Semana passada, alertado de que havia chegado um 'lote' contendo diversas publicações 'Católicas' (anterior ao C V II , é claro) lá fui eu ao Sebo torrar dinheiro.
Dentre os diversos livros que tive a oportunidade de folhear havia um pertencente a 'Coleção éfeso'. Dizia respeito a Ch de Foucauld e havia sido escrito pelo acadêmico francês René Bazin. Sabendo que C de F fora mártir, tendo sido assassinado pelos Taminderasset, uma tribo muçulmana no Norte da África, interessei-me.
Foi quando abri a primeira página e deparei-me com mais ou menos isto: O sofrimento então se faz doce, e aspiramos sofrer mais... Cito livremente.
E foi o quanto bastou para fechar o livro e lança-lo novamente a pilha de inutilidades.
Ainda no mês anterior, Abril, havia tido uma discussão com uma devota mal orientada justamente a respeito do tema do sofrimento. O qual a dita mulher desejava IMPOR a todos os Católicos, como grave dever a que não podiam fugir, remetendo todos os que não concordavam com ela as caldeiras do pero Botelho...
Já naquela ocasião um turbilhão de memórias e pensamentos haviam assaltado-me a mente.
De pronto vi-me retroceder a um quarto de século, a 1992, um ano após minha conversão. Lembro-me de ter adquirido, também num sebo, algumas obras do falecido padre João Mohana, pessoa boníssima e que escreveu muita, mas muita coisa verdadeira e edificante. Havia adquirido 'O mundo e eu' e 'Sofrer e amar' e foi nesta última que deparei com este fragmento de que jamais vim a esquecer:
"O budista aceita o sofrimento resignadamente. O Cristo não, aceita o sofrimento com alegria." a citação também é livre pois nem sei mais em que parte de minha Biblioteca se encontra o livrinho do Pe Mohana, quanto ao mais bastante belo.
De pronto, intuitivamente, sabia que havia ali uma grande verdade. Mas também sabia que estava muito mal posta...
Algum tempo depois cheguei a ler alguma coisa sobre Eva lavallière, Elizabeth Leseur... nas quais havia eco de tais opiniões.
A respeito da dor ser agradável ou sobre a necessidade do Cristão buscar, procurar ou desejar sofrer.
Era toda uma aspiração pelo sofrimento e negação da vida.
Sabia que havia algo de muito errado quanto a isto, mas acabei pondo um peso em cima. Pois tinha muito que me preocupar com os protestantes, kantianos, ateus, materialistas, stirnerianos, capitalistas, comunistas, fascistas, nazistas, muçulmanos, etc, etc, etc Passando de polêmica a polêmica.
Foi quando, há coisa de alguns meses, levei a questão Mariana, levantada por alguns protestantes, ao terreno da Cristologia, abordando o tema da natureza humana de Jesus e sua livre vontade. O quanto bastou para exasperar os protestantes meio docetas, nestorianos, monofisitas e impermeáveis ao pensamento equilibrado de Calcedônia. Cristologia é coisa com que não estão familiarizados.
Aproveitei a oportunidade para avançar na leitura e examinar as fontes da Cristologia a luz dos Santos Evangelhos, especialmente no que toda a natureza humana de Cristo e a sua livre vontade.
Foi quando acabei topando com os citados apologistas do sofrimento... Estes 'católicos' nominais e até fanáticos, embora contaminados pela heresia maniqueísta, da mesma maneira que os puritanos e outros espiritualistas descarnados, inimigos do corpo físico e da matéria, cuja inferioridade apregoavam.
Ainda há alguns dias topo com o mesmo discurso assumido por uma pessoa, ao menos em parte, civilizada e esclarecida, a qual creio ter conseguido, ao menos em parte, reorientar.
Hoje a discussão acabou tocando aos 'videntes' da Fátima, dois dos quais morreram de tuberculose e fraqueza, provocadas pelos jejuns e mortificações aberrantes a que se submetiam voluntariamente com o objetivo de terem seus pecados perdoados e não terem de queimar eternamente nas chamas infernais. E eram crianças! E acreditavam ter pecados gravíssimos! E julgavam ser corruptas ou depravadas por natureza! E machucavam seus próprios corpos! Até que chegaram a desejar a morte!
E hoje tais crianças 'desajustadas' são postas como exemplo a juventude.
Apesar de, conforme a doutrina Alias segura - da penitência ou da mortificação, ensinada pela freira espanhola canonizada Tereza de Avilla, terem cometido suicídio! Porque o rigor da penitência segundo esta sábia mulher, implica suicídio e por consequência condenação eterna!!!
Todos estes pensamentos esparsos fizeram-me refletir detidamente sobre o tema indigesto do masoquismo espiritual assumido por parte da igreja romana.
Subentenda-se masoquismo enquanto amor e consequente busca pela dor ou pelos sofrimentos. O masoquista só se sente feliz e realizado quando sofre. E para ele a dor equivale a um prazer.
Naturalmente que se trata duma criatura desajustada, a qual, segundo a doutrina de Freud, seria completamente dominada pelo que classifica como instinto de destruição ou de morte; ou guiada inconscientemente por um complexo de culpa...
Considere agora amigo leitor, que parte considerável da igreja, chegou a alimentar ou a estimular tais sentimentos!
Simplesmente deplorável...
Há no entanto coisa mais deplorável!
Mas será possível?
Quisera que não fosse...
Então diga logo homem!
Imagine só, que essa mesma parte, putrefata; da igreja, chegou a pintar nosso abençoado Mestre e Salvador Jesus Cristo como alguém que amou e desejou o sofrimento!!!
Apresentam Nosso Senhor Jesus Cristo como vil masoquista, o qual não via a hora de ser coroado de espinhos, fustigado e suspenso na Cruz!
Apresentam-no como uma anormal que dia após dia deliciava-se antecipadamente só com o imaginar suas próprias carnes sendo furadas pelos pregos!
Como alguém que, caso o algoz tivesse hesitado, teria tomado a coroa de espinhos e posto sobre a própria fronte...
Como alguém que se pudesse teria duplicado ou mesmo triplicado as trinta e nove chibatadas!
Como alguém que se possível fosse teria escarrado para cima...
O Jesus que apresentam ao mundo é um Jesus que não sabe contar as horas, minutos e segundos para ser torturado pelos romanos, tal sua voluptuosidade!!!
O problema aqui é que falseiam o Evangelho.
Apresentando aos homens um falso Jesus, um Jesus que jamais existiu.
Afinal, estando prostrado junto ao horto e consumido pelo simples pensamento a respeito das dores porque seria acometido, nosso Senhor ao invés de rogar para que fosse torturado o mais cedo possível e sem maiores contemplações, dirige-se a Natureza divina nestes termos:
"Afasta-se de mim este cálice se possível for."
Querendo significar que a natureza humana achava-se aterrorizada face ao espectro da dor e da morte!
Afinal por que teria suplicado o afastamento do cálice, se o quanto desejava era sorve-lo gole a gole, a ponto de deliciar-se???
Se implora para o cálice ser removido ou afastado de si é justamente porque o sofrimento exaspera-lhe a condição humana, e porque de modo algum deseja sofrer, senão a contragosto, heroicamente e para cumprir um desígnio eterno de amor. Não, não foi algo que a natureza humana aceitou ou executou facilmente como quem engole um pedaço de doce ou bolo, mas um desafio a que teve sde superar e vencer livremente. E nisto é que esta o valor do mistério!
Por fim o divino Mestre é suspenso no madeiro por meio de três cravos de bronze, e lá estando, suspenso, que diz???
Pai meu, Pai meu porque me deixastes.
Querendo significar que a natureza divina abdicará de seu poder e desamparara a humana, entregando-a ao sofrimento e a dor, a respeito da qual envolvido pelo paroxismo extremo, murmura o Mestre, queixosamente! Tal o mistério da angústia e da dor, que o Senhor apenas suporta pacientemente com o objetivo de chamar-nos a si e reconciliar-nos.
Agora dirão esses mestres ímpios que lá estava o Senhor e Mestre deleitando-se no alto da cruz???
Só mesmo um demente ou energúmeno seria capaz de ler tais palavras e concluir que Jesus estava contente ou festejando enquanto sucumbia!
Não há mais o que dizer ou declarar, as palavras estão ai, quem quiser que as leia!
E depois cuspa sobre os santos Evangelhos supondo estarem equivocados, ou serem - Os apóstolos do masoquismo - mais espertos do que os hagiografos e evangelistas, sabendo algo que eles ignoram!
"Entre clamores e lágrimas suplicou aquele que o poderia livrar da morte." certifica o apóstolo. E esses celerados imaginam um Jesus sorrindo alegremente enquanto verte sangue aos borbotões!
Só falta acrescentar, exatamente como fazem os protestantes a respeito do Mistério eucarístico:
"A carne para nada presta."
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E no entanto esta carne Santa gerada pelo Espírito e pela Virgem, não apenas conheceu como antecipadamente temeu e aborreceu a dor, a cujo mistério submeteu-se apenas por amor de nós outros, para despertar-nos do sono em que, a semelhança de Endimião havíamos caído.
Foi desta compreensão errônea ou equivocada, pautada num falso modelo, ilusório e fantasioso, que resultou toda esta mística virulenta e desprezível sobre a necessidade do Cristão amar o sofrimento ou de abraça-lo com alegria.
Quando o que o Catolicismo tem a oferecer-nos, face aos sofrimentos inexoráveis a que não podemos escapar ou fugir, é a imagem consoladora de um Deus agonizante e sofredor, de um Deus solidário e companheiro, de um Deus que aspirou tornar-se exemplo para nós. Exemplo de aceitação face a eventos que podemos evitar...
Não é portanto apenas o Budista que recebe o fardo do sofrimento com resignação, mas também o Cristão, porque ambos são homens e feitos da mesma matéria. Por isso ambos sentem por igual e experimentam as mesmas sensações...
E ambos resignam-se face aquilo que é inexoravelmente dado pela condição... O Budista pelo temor de seu karma, o Cristão face ao mistério da Cruz ou de um Deus agonizante e sofredor.
Não há o Cristão que buscar o sofrimento pelo simples fato de seu Deus não o ter aceito livremente mas se submetido a ele por absoluta necessidade. Não pode deixar de sentir repugnância por ele pelo simples fato de que a natureza humana do Cristo não pode deixar de senti-la...
Quando necessário fora saberá agir heroicamente, saberá curvar-se face aos imperativos da condição humana, saberá resignar-se como o budista ou o estoica, mas não será masoquista, porque o masoquista não passa de miserável desajustado. Não apreciará o sofrimento como um doce, não de deleitará nele, não o estimará, não o buscará de modo algum... Pois seu Mestre e Senhor não procedeu assim, e nem asceta foi a exemplo de João seu primo, antes declarou:
"Veio o Filho do homem que come e bebe."
Outrossim, aspirasse pelo sofrimento, nem comeria, nem beberia; mas como João, que era asceta, teria vivido mais de jejum e sede do que de qualquer outra coisa!
Nem jejuou, nem - a semelhança dos fariseus, que eram hipócritas e maniqueístas - impôs o jejum a seus seguidores, daí o teor da acusação:
"Os teus discípulos não jejuam."
Acrescentando que futuramente se absteriam livremente de comer, em memória de sua morte, e não porque fosse saboroso jejuar!
Por fim, em parte alguma dos Santos e abençoados Evangelhos damos com essa mistificação grosseira em torno do masoquismo, fruto podre do maniqueísmo.
Dirá o Católico 'Filho da Encarnação', afetando os fariseus, maniqueístas, neo platônicos, protestantes e puritanos, que o corpo é inferior ao espírito, que o corpo para nada serve, que não devemos nos preocupar com o corpo, etc, etc, etc???
Neste caso, cumpre adverti-lo de que o fundamento de nossa fé é justamente a Encarnação de Deus e sua manifestação no mundo material. Nosso Deus, o Deus Católico, apregoado pela Ortodoxia, é um Deus reconciliado com a imanência, é Deus humanado, presente, visível, encarnado, companheiro, solidário; Emanuel enfim, porque caminha conosco. Nosso Deus é Deus que assumiu a integralidade da natureza humana, dignificando e santificando todo universo material.
Os Católicos ao contrário dos judeus e dos maometanos não prestam culto a um ser puramente transcendente, invisível, fantasmagórico e descarnado; mas a Transcendência na Imanência e em perfeita comunhão com ela por meio do mistério da Encarnação. Nosso Deus é Deus presente. Nosso Deus é amigo da matéria e não seu adversário.
Considere ainda que ser humano algum deixou de ser atingido por este mistério cósmico da entrada de Deus na História, convertendo-se todos - em especial os batizados - em templos vivos do Espírito Santo, que é o Logos; postos para a ressurreição final; quando segundo a fé receberão a forma do corpo, tornando-se perfeitos, porquanto a existência puramente anímica para eles continua sendo imperfeita e devem recobrar sua integralidade por meio da restauração da carne.
Por essas e outras razões não pode o Católico a companhar os protestantes, maniqueus, neo platônicos e mesmo espiritas em suas objurgatórias contra a corporalidade material. A menos que aspire fazer galas de sua estupidez e incoerência. O Ortodoxo avalia o corpo em conexão com o dogma central de sua fé e só pode avalia-lo positivamente, afirmando sua dignidade. O que dá origem a toda uma 'teologia' do corpo...
A menos que tenha de perder este corpo para conservar a alma e mante-la - Enquanto princípio operatório e racional - estável na comunhão com a divindade, amará o homem a este corpo, trata-lo-a bem e velará por sua dignidade alimentando-o com moderação e satisfazendo racional e honestamente todas as suas necessidades. E todo dano voluntário que causar em seu próprio corpo lhe será atribuído como suicídio.
Valorizara por fim esta existência material e mortal como representando mais uma chance para aprender a viver e conviver, mais uma oportunidade educativa, mais um aprendizado. E por isso buscará sempre conserva-la ao invés de reduzi-la ou de abrevia-la a semelhança dos cátaros, albigenses e outros sectários para os quais não passava duma tragédia ou drama sem sentido. A dramaticidade ou o trágico da existência compreenderá e consequentemente suportá a luz da fé inspirada pelo mistério da Cruz, mantendo sempre um justo equilíbrio.
Compreenderá todavia que o plano de Deus consiste em que tire o máximo proveito ético desta existência tendo em vista a fruição da outra.
E por isso não oprimirá seu corpo, nem o desprezará, nem mesmo ousará falar contra ele, alimentando doutrinas maniqueístas e masoquistas, as quais acham-se em oposição aos Santos Evangelhos e a fé da igreja.
Quanto aqueles que apesar de estarem cônscios a respeito de tudo isto e que ainda assim sentem prazer em sofrer, remetemo-los cortesmente aos psicólogos para que busquem ajuda, sabendo que passam por um estado de anormalidade que nada, absolutamente nada tem a ver com a fé Ortodoxa e Católica.
Por fim, resta-me declarar, que mesmo a aceitação dos sofrimentos que não se pode evitar deve ser livre e espontânea, jamais externa, mecânica ou farisaicamente imposta por quem quer que seja. Nem Papa, nem patriarca, nem bispo, nem clérigo, nem monge, nem devoto tem o direito de impor dogmaticamente esta aceitação a outrem. A decisão de resignar-se ao mistério da dor para ser meritória deverá ser sempre fruto de livre decisão e não de imposição arbitrária, pois cada um conhece a dor que sente e seus próprios limites. Assim se algum irmão se rebela ao ser tocado pela dor só nos resta acolhe-lo com todo amor e carinho, tentar compreender e abster-se de julgar e condenar. Do contrário reproduzimos o pecado dos fariseus, os quais costumavam depositar imensos fardos sobre o ombro alheio, mas que não se dispunham sequer a empurra-los com o dedo mínimo...
Abandonemos assim não apenas o masoquismo mas também o pecado do sadismo.
E busquemos viver uma vida de amor no gozo da paz.
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