Conhecida entre nós ocidentais - Em especial lusófonos e mais especialmente ainda entre nós brasileiros, sempre muito pouco preocupados com nossa herança cultural antiga, oriunda do outro lado do Mar Oceano - a pobreza quase miserável em torno de estudos bizantinos.
Devido a toda uma convergência de preconceitos transmitidos pelo materialismo hodierno, pelo iluminismo, pelo protestantismo, pelo papado, pelas pretensões acalentadas pelo sacro império romano germânico e por sei lá mas o que, habitua-mo-nos a repetir clamorosas asneiras sobre a multifacetada cultura bizantina. E de tal modo habitua-mo-nos a repeti-las que até cremos nelas.
E no entanto trata-se de uma mal querença que remonta aos tempos do 'falso imperador' ou do imperador de mentirinha Carlos Magno. Desde os tempos dos carolíngios aprendemos falar mal dos 'romenos', dos rumanios, dos romanos do Oriente, dos greculos ou greguinhos; enfim dos bizantinos. Em seguida adicionaram-se outros tantos conteúdos culturais acima discriminados. Mormente após o cisma de 1054 - quando o Ocidente passou a fabricar seus próprios cristianismos, assim o papismo, assim os protestantismos, rompendo com a Unidade Católica Ortodoxa - os gregos, rebeldes e cismáticos passaram a ser odiados ainda mais.
Sintomático que os primeiros protestantes a terem tomado contato com a cultura bizantina, já em seus estertores finais, não hesitaram a descrever os gregos insolentes como mil vezes piores dos que os papistas...
Já para os empiristas e cientificistas, e positivistas os bizantinos não passavam de uns degenerados e poltrões cujas vidas consistiam unicamente em discutir sobre questões gramaticais, poéticas, filosóficas e teológicas, dispendendo todo seu tempo e energias. Assim era a sabedoria bizantinesca sinônimo de sabedoria ociosa e inútil.
No entanto este tão pouco conhecido e mal falado contesto foi responsável por ter viabilizado em larga escala o primeiro serviço de promoção humana e social de que temos notícia. No entanto não é a respeito dele que pretendemos discorrer neste artigo.
Mas sobre a tese demolidora, iconoclástica e revolucionária de Anthony Kaldellis. (Apud Kaldellis 'The bizantine republic - People and power in new Rome'.
Optamos por apresentar esta síntese, a guiza de complemento a respeito de tudo quanto escrevemos sobre as fontes da democracia medieval, de modo a obter uma visão global ou totalizante numa perspectiva Cristã.
Afinal de contas porque raios o espírito e algumas formas democráticas teriam se conservado apenas no Ocidente barbarizado e não no Oriente Bizantino?
Lançando para bem longe de nossas vistas todas aquelas velhas lições em torno da autocracia bizantina e de seus imperadores despóticos, vulgarizadas não apenas por nossos livros didáticos mas até mesmo pelos 'bizantinistas' ocidentais, o homem nos oferece outra perspectiva tanto mais lúcida quanto realista.
Então, vamos a Kaldellis?
Segundo Kaldellis ao invés de ser autocrática, despótica, tirânica, etc a 'República' - e o autor emprega o termo república na antiga acepção em que não se confunde ou identifica com democracia e que reposta a administração comum (pública) e quiçá ao bem comum de Aristóteles - Bizantina realizará sabiamente o programa político por ele atribuído a Dion Cássio, mas que na verdade remonta a Políbio. Referi-mo-nos a ideia de república mista em cuja forma entrariam elementos da monarquia, da aristocracia e da democracia. Isto porque em suas formas 'puras' ou absolutas as três formas em questão estariam postas para uma degeneração inevitável. Assim da monarquia pura adviria a tirania, a qual sucederia a aristocracia pura. Esta degeneraria oligarquia, a qual sucederia a democracia pura e desta a anarquia (diríamos hoje anomia) a qual certamente conduziria os espíritos a monarquia, fechando-se o ciclo e repetindo-se infinitamente. Diante disto, qual a solução mais viável?
Uma vez que as formas puras são essencialmente passíveis de corrupção é necessário que o legislador misture ou associe equilibradamente as três formas.
Impõem-se aqui uma conclusão até certo ponto insólita: A solução para o problema político não se encontra na conturbada Grécia mas no Lácio, junto as sete colinas e é Roma quem no-la oferece. Não Atenas mas Roma! Pois enquanto os pensadores barbudos da Hélade haviam encastelado em posições sectárias e radicais, os habilidosos e sensatos romanos haviam concebido um modelo misto e funcional que não era nem monárquico, nem aristocrático e nem democrático mas as três 'coisas' simultaneamente.
Assim o cliente dos Scipiões, benignamente acolhido pelo 'povo romano' não hesita apresentar a República romana como modelo de síntese e equilíbrio políticos.
De fato todos os adversários da democracia direta, pura, absoluta ou popular do federalista Norte Americano Madison aos monarquistas constitucionais e parlamentaristas são em maior ou menor medida tributários de Políbio seja por via de Dion Cássio ou não.
É justamente em termos de monarquia constitucional que Kaldellis parece enxergar o império Bizantino. Analisando as fórmulas rituais de entronização e de deposição (empregadas durante as rebeliões) em torno das clássicas expressões "Axios" e "Anaxios" (assimiladas durante o ritual de consagração episcopal ortodoxo inclusive) o mínimo que se pode concluir é que os cidadãos bizantinos discordavam quanto as pretensões absolutistas de seus governantes atribuindo a si mesmos a faculdade da designação ou transmissão de poder e inclusive uma faculdade de suspensão ou de dedignação.
Portanto, ideologicamente falando, nem todos os elementos daquela sociedade assentiam mecanicamente as pretensões absolutistas e autocráticas expressas pela coroa. Havendo entre os cidadãos bizantinos um 'sentimento' divergente.
Dando seguimento a isto passa Kaldellis as estatísticas demonstrando que durante seus quase mil anos de História, O Império Bizantino conheceu uma rebelião a cada cinco anos. O que nos levaria a cerca de 200 rebeliões!!! Eram os imperadores menos estáveis no gozo do poder do que qualquer parlamentar reeleito no contesto das democracias contemporâneas. Pelo que as trocas ou alternâncias de poder eram sucessivas e continuas. Assim se haviam imperadores que como Justiniano retiveram o poder por alguma décadas outros houveram que detiveram o poder por alguns dias ou mesmo algumas horas apenas! De modo geral temos dez ou mesmo nove anos de governo para cada um deles!
O número impressionante de rebeliões e a instabilidade do titular imperial de modo algum se explica caso admitamos que toda aquela sociedade encarasse o Imperador como um representante de deus ou como alguém comissionado por ele. Admitida como premissa que tal concepção estivesse generalizada naquela Sociedade, o vultoso número de sedições levadas a cabo pelos súditos com relativo sucesso tornar-se-iam enigmáticas e a História ganharia mais um 'mistério' ocioso.
Outro aspecto que temos de considerar é que apenas muito raramente foram tais rebeliões reprimidas com máximo rigor, a exemplo da sedição de Nika, quando Justiniano mandou Belisário massacrar os rebelados presos no estádio. Via de regra os todo poderosos imperadores acovardavam-se e negociavam com os sediciosos. Outra atitude atípica numa realidade autocrática de que temos exemplo na 'Noite de S Bartolomeu' e no 'Outubro vermelho'... Reis conscientes de sua autoridade divina e poderes não negociam, supliciam.
Nem podemos ignorar que mesmo após o advento da reforma protestante, as decapitações de Maria Stuart, Carlos I e ainda de Luis XVI e Maria Antonieta foram impactantes, chocando grande parte da população europeia. A propósito de Carlos I consta que quando sua cabeça foi separada do corpo a multidão gemeu como um só homem exarando um grito aterrador. Não poucos embeberam lenços em seu 'sangue azul' como já haviam feito quando M Stuart fora executada, e guardaram aqueles lenços como 'sinais dos tempos' ou como amuletos.
No imaginário europeu ocidental dos séculos XVI, XVII e XVIII a simples ideia de depor um rei ungido soava como essencialmente pecaminosa, pelo simples fato de teóricos como Tiago I, Hobbes, Bodin e Bossuet dentre outros terem forjado a doutrina do absolutismo, corrente já a gerações. Porque aquela sociedade estava imbuída de sentido absolutista tal gênero de execuções era por assim dizer insólito ou aterrador.
Já no Império Bizantino os reis não era apenas depostos aos gritos de 'anaxios' ou 'desenterrem seus ossos' mas mutilados pela plebe enfurecida, tendo suas orelhas e narizes cortados e olhos vazados, quando não eram eternamente sepultados em mosteiros como Prinkipo, e davam-se por felizes. Diante disto como dar por estabelecido que tais pessoas encaravam os Imperadores como pessoas escolhidas por deus?
Todos estes problemas assaz conhecidos tem sido sucessivamente 'ignorados' pelos bizantinistas tradicionais completamente cegados pelo espectro do cesaro papismo e da autocracia.
Os críticos de Kaldellis tem se dado por satisfeitos com o replicar que inexiste qualquer testemunho escrito ou evidência documental em torno de uma Constituição Bizantina de caráter misto que admitisse a par da forma monárquica elementos democráticos ou mesmo aristocráticos. Como se pudesse a realidade ser dobrada por documentos... Porque se não haviam registros oficiais ou pactos haviam certamente costumes e costumes gregos, e cultura helênica ancestral.
Não penso que em qualquer momento o Imperador tenha sequer cogitado em reconhecer tais costumes ou em oficializar tal tipo de cultura, mas que ela estava ali presente fomentando sucessivas rebeliões e produzindo instabilidade estava. Comparado com os padrões de governo anteriores, seja o assírio ou o romano, foi o governo bizantino infinitamente mais maleável e mais humano. No entanto, nem por isso gozou de mais estabilidade do que os cruéis impérios que o precederam e conheceu por assim dizer a turbulência. Agora a que se deveu isto?
Chegados até onde chegamos acreditamos estar capacitados para responder a esta pergunta asseverando que apesar da forma monárquica, de modo algum imposta pelo Catolicismo, mas legada pelo Império romano, o setor Oriental ou grego do Império jamais rompeu por completo com as tradições democráticas legadas pela Hélade. As formas haviam sido atenuadas ou negadas desde Alexandre e ao cabo do Império romano ocidental, o espírito democrático no entanto permaneceu vivo naquelas consciências e naquela cultura levando parte daquela Sociedade a questionar um modelo cada vez mais estreito de monarquia e a conflitar com ele.
Então o que temos em bizâncio é um eterno estado de tensão em torno de dois polos equidistantes: Uma estrutura monárquica de tendências absolutistas legada pelo Império romano, sobreposta a uma Sociedade cuja consciência ao menos em parte sentia nostalgia de suas liberdades políticas ou do liberalismo ancestral. Desta acomodação ou justaposição muito mal acabada resultaram as centenas de sedições e rebeliões bem como o esgotamento e o fim daquela Sociedade. Eram elementos díspares, que ao cabo de alguns séculos, haviam de desagregar-se.
Assim a conclusão a que chegamos é que o espírito democrático e algumas formas democráticas jamais desapareceram por completo do contesto cultural europeu, resistindo inclusive as invasões árabe e teutônica e a sucessivas conflagrações até reafirmarem-se na Europa Ocidental do século XIII e serem engolidos pela maré absolutista do século XVI. O que nos aponta para uma solução de continuidade, embora nem sempre consciente. Esses ideais e formas podem ter saído da consciência mais jamais foram eliminados totalmente no plano da cultura. Assim alimentados pelo Cristianismo e suas instituições tornaram a florescer por algum tempo e depois a declinar... Assim a democracia não foi totalmente extraída por eruditos e teólogos modernos aos livros antigos. Antes corresponde a um espírito vital jamais removido de nossas mentes desde os tempos de Clistenes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário