sábado, 7 de janeiro de 2017

Direitos humanos, uma perspectiva Cristã





A Wilson Reis 


Não compreendo que um Católico ou mesmo qualquer Cristão de boa vontade ouse questionar a validade dos direitos da pessoa humana.

Tal e qual a questão da negativa pelo socialismo, a questão dos direitos humanos deve ser analisada com bastante delicadeza. De modo que por estupidez ou burrice não venham os católicos mais uma vez a endossar as insanidades e obscenidades divulgadas pelos sectários protestantes.

Pois a perspectivada Igreja não é a deles e ainda que ela repudiasse a essência do socialismo ou dos direitos humanos sua perspectiva jamais seria a do capitalismo ou a do mosaísmo, mas outra coisa bastante diferente.

No entanto não é o caso.

Eis porque  Saulo de Tarso - em seu opusculo sobre o socialismo e a igreja - colocava a questão nos seguintes termos: Grosso modo podemos dizer que a disputa entre socialismo e catolicismo social não se dá em termos de prática, pois o objetivo a que se pretende chegar é bastante parecido, mas em termos de teoria. O Socialismo afirma o naturalismo crasso e em muitos casos a irreligiosidade e o ateísmo, enquanto o fundamento do Catolicismo social encontra-se em Deus enquanto Legislador Supremo e eterno. Donde a igreja não vê - e nem poderia ve-lo - como seria possível eliminar ou mesmo reduzir as injustiças sociais se Deus...

Aparentemente a crítica da igreja parece idiota. Mas não é, tocando aos fundamentos mesmos do direito natural e da Ética. O grande problema aqui é que quando a igreja escreve ateísmo devemos compreender não a negação do Deus dos filósofos ou do Deísmo e sim o repúdio a qualquer sistema de Ética que não esteja fundamentado numa ou melhor na religião revelada. Donde a Ética para a igreja será sempre uma Ética Cristã determinada por ela, jamais uma Ética naturalista arquitetada pela razão no plano metafísico.

O problema crucial aqui é que a Ética Cristã não é apta para inspirar uma Sociedade pluralista composta por membros de diversas comunhões religiosas e por um segmento de irreligiosos inclusive. A Ética Cristão só serviria para nortear uma sociedade 100% Cristã, a qual por assim dizer inexiste.

Aqui o grande erro da Igreja romana e de outras tantas fés, foi deixar de prestar apoio a Ética do deísmo ou do teísmo natural nos moldes dos antigos gregos. E condenar estupidamente todas as causas sociais e humanitárias que ousassem assumir um caráter naturalista, tendo em vista sua universalização.

Outra não é a questão dos direitos essenciais da pessoa humana.

Afinal pondo de lado algumas cogitações elaboradas pelos antigos estoicos alguns séculos antes de Cristo a ideia de uma lei ou direito natural teve por ponto de partida as investigações realizadas em Salamanca por Francisco de Vitoria que era um padre Dominicano. Naturalmente que suas reflexões estavam fundamentadas sobre três nichos ideológicos: A filosofia antiga ou pré Cristã, O Evangelho e a tradição patrística e o patrimônio escolástico.

Portanto sua reflexão foi quase que totalmente inspirada nas fontes áureas do Cristianismo.

Foi a partir daqui que os Dominicanos (Cano, Bañez, Soto, Campanella...) e os Jesuítas (Suarez - o 'Patriarca do jusnaturalismo' - Mariana, Bellarmino...) foram extraindo os elementos de uma política e de um direito naturalistas sem no entanto romper com a tradição da igreja pelo simples fato de que ao tempo as sociedades em que viviam era essencialmente Cristãs e não multifacetadas religiosamente falando.

Grosso modo podemos afirmar que os naturalistas ou irreligiosos, ou ainda iluministas fizeram muito, muito pouco no sentido de criar algo novo e que tomaram todo material político e jurídico aos sacerdotes e clérigos papistas, o que a primeira vista até parece assombroso. Basta recordar que a quase totalidade dos iluministas franceses (assim Voltaire, Col SJ  Louis le Grand; Diderot, Col SJ de Langres; D Alembert, Col SJ de Collège des Quatre nations, etc) haviam estudado em institutos religiosos ou mesmo jesuítas e sido alunos dos sacerdotes/filósofos.

Ignorar essa faceta dos patriarcas do iluminismo é ignorar a própria trama da cultura.

Portanto o que eles se limitaram a fazer foi secularizar uma ideia de direito natural e universal que já circulava a séculos nos meios eclesiásticos. Foi deste material essencialmente humanista e Cristão que extraíram os elementos constituitivos da doutrina dos direitos inerentes a pessoa humana.

Como todavia não quisessem vincular tais elementos a tradição Cristã ou como se diz hoje 'reconhecer os créditos' e em alguns casos mesmo a existência de um Deus Legislador - em que pese as advertências de um I kant - a igreja se lhe opôs e fez do naturalismo universalizante um carro de batalha, alias prestando um grande deserviço a civilização.

Até aqui as cogitações de ordem prática editadas pela alta teologia.

Agora se pomos o dedo lá bem no funda da ferida daremos com um problema muito mais sério e grave, que toca a ordem prática das coisas ou a cultura e que por assim dizer obscureceu a mente daqueles que dominavam politicamente a vida da igreja romana i é os curialistas, cardeais, papas e quase todo o alto clero.

Trata-se obviamente da existência da Inquisição ou do santo ofício.

Cujas implicações teológicas são bastante graves e profundas.

Pois não se trata aqui de matar ou de assassinar apenas. O que já seria grave.

Mas de matar ou assassinar pessoas pelo simples fato de discordarem da fé da igreja ou de desejar abandona-la.

O que nos leva a uma questão essencial em termos de Cristianismo e pela qual nos opomos marcadamente por exemplo ao Fascismo e ao Comunismo, que é a questão da liberdade.

Assim a existência da Inquisição implica a negação da liberdade religiosa e bem pensado da liberdade humana. O que nos levaria mais uma vez a ideologia agostiniana e posteriormente a calvinista...

Importa saber que em algum momento do século XIII desta Era, a doutrina tradicional e clássica da liberdade, foi mais uma vez posta em dúvida pelo Cristianismo Ocidental. E negada a simples possibilidade de decidir-se livremente em matéria de fé ou piedade.

A ruptura com a prática anterior foi tão brusca que a nosso ver só pode ser compreendida a partir de um poderoso reforço concedido a ideologia agostiniana, a qual por si só dificilmente teria podido alterar o estado vigente das coisas. Basta lembrar que Bernardo de Clairvoux - o assim chamado oráculo da Idade Média - mesmo sendo agostiniano era totalmente contrário a execução dos heréticos e ao constrangimento em matéria de fé.

Quando penso historicamente a inquisição penso-a como assimilação da instituição islâmica da Murtad pelos cristãos espanhóis islamizados do século XIII.

Aqui, paradoxalmente, a Murtad islâmica acabou por confundir-se com o próprio espírito das cuzadas ocidentais, já despojadas de seu sentido original que era a resistência a um ataque ou a uma agressão ou a uma invasão (jihadismo) promovida pelo islã. Por força de hábito os espanhóis passaram a encarar todo e qualquer dissidente Cristão como um jihadista... perderam por completo a noção de infidelidade (ademais agressiva como a muçulmana) e heresia, muitas vezes pacífica. E tudo foi enfiado no mesmo saco de gatos.

Posteriormente na medida em que as pessoas (clérigos inclusive) foram se aproximando mais e mais do antigo testamento ou da Torá, na perspectiva de um Corão Cristão, a instituição inquisitorial passou a ser alimentada por uma fonte supostamente Cristã e a maior prova neste sentido foi que os reformadores protestantes, com seu apelo a Bíblia unitária, jamais cogitaram em reforma-la ou extingui-la. Muito pelo contrário tanto mais valorizavam o antigo testamento ou os escritos judaicos e portanto a antiga cultura judaica, e tanto mais reproduziam o ideal da intolerância como um ideal essencialmente Cristão, de que temos exemplo em Calvino, em Beza e em Thomas Edwards...

Convergiram aqui três fatores para a afirmação do espírito inquisitorial:

  • A islamização da cultura ibéria e a transposição de elementos como a Murtad
  • Um espírito cada vez mais distorcido de resistência física e social a dominação islâmica.
  • A ideia de um Corão Cristão ou de que os escritos judaicos (Torá) possuem uma autoridade tão elevada e grande quanto o Evangelho de Cristo (Inspiração linear ou plenária)

Mesmo porque a tradição islâmica e a tradição judaica ante Cristã ignoraram supinamente o conceito ou simples ideia de liberdade pessoal (o que engloba a liberdade religiosa). Havendo quem como Fustel de Coulanges defenda que sequer os gregos possuíssem um tal tipo de consciência 'liberal', a exceção do campo da política ou da democracia.

Admitida a premissa de Coulanges somos obrigados a concluir que o conceito de liberdade pessoal e portanto de liberalismo religioso, teve sua gênese no Evangelho ou seja no Cristianismo. Sintomático é que a instituição da Murtad, posta para a morte ou assassinato dos apóstatas, encontra-se tanto no judaísmo antigo ou no Velho testamento quanto no Islamismo mas de modo algum no Evangelho, no Novo Testamento, na Tradição apostólica, no pensamento patrístico ou mesmo na primeira escolástica e no franciscanismo nascente, i é até meados do século XIII, surgindo no contexto específico da Espanha por iniciativa dos Dominicanos.

São mais de mil anos de total ausência de um mecanismo repressor Cristão em termos de fé.

No entanto a adoção desse mecanismo pela Igreja latina a partir do século XIII foi o quanto bastou para obscurecer a ideia de direitos humanos na vida da Igreja. Pois se o homem não tem direito a liberdade e a vida terá direito ao que?

Lamentavelmente a aparição do protestantismo, o estardalhaço feito por ele em torno do antigo testamento e da cultura judaica, o apoio recebido por ele por parte do poder secular, etc acabou por afastar a igreja romana ainda mais de sua própria consciência histórica e por mante-la atada e presa aos elementos islâmicos e judaicos, até em meados do século XIX, após a afirmação dos direitos do homem por parte dos irreligiosos, fazer sua pior cagada (sob Pio IX) ao condenar os direitos da pessoa humana e a sancionar diversas formas de opressão em nome da religião de Cristo e de seu Evangelho, nada ficando a dever - em matéria de insanidade - aos Malafaias, Everaldos, Campos, Cunhas, Felicianos, Crivellas, etc do tempo presente.

Quando Calvino e Beza já haviam sido lançados as urtigas pelos próprios protestantes europeus, os quais ora esforçavam-se por ocultar seus tenebrosos ensinamentos a respeito da pessoa humana, assistimos o espetáculo de um Papa romana repetir-lhes as lições! Negando o liberalismo religioso!
Não se trata obviamente de negar as consequências espirituais do erro em matéria de religião, pelo qual certamente haverá de responder no plano espiritual ante a face de Cristo, mas de negar resolutamente a pretensão judaico/muçulmana de que tais erros devam ser impedidos ou punidos por outros homens, enfim pela mesquita, pela sinagoga ou pela igreja. A questão aqui não é de relativismo, no sentido de que o equivoco em matéria de fé seja irrelevante ou inócuo, como supõem o papa Pio IX. A questão é se as sementes deitadas pelo inimigo possam ser removidas pelo homem ou pelos oficiais da igreja antes do tempo da colheita, e a resposta fornecida pelo Cristo nos Evangelhos é não! É mandamento do Senhor esperar até o momento da ceifa, isto quando a erva má não morrer por si mesma...

No entanto quando retiramos uma peça de ouro ou prata do lamaçal e removemos o lodo que a envolve ali esta o ouro e a prata brilhando novamente. Assim removida a doutrina da inquisição e todas as péssimas ilações teológicas que dela decorrem temos mais uma vez diante de nós a legítima tradição da Igreja Católica a brilhar e como veremos no próximo artigo esta tradição é uma tradição humanista e justicionista destinada a afirmar essencialmente os direitos e as prerrogativas da pessoa humana.

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