quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

As fontes medievais da vida democrática





Estas reflexões estão fundamentadas nas obras do sociólogo agnóstico Belga Léo Moulin (1906 - 1996)

Ocioso registrar que o espírito democrático tenha feito sua primeira aparição na Sociedade grega pré Cristã.

E que tenha tenha ressurgido de diversas formas ou modos no contesto medieval: Em 1215 por ocasião da assinatura e do reconhecimento da "Carta Magna" pelo rei João sem terra, em 1231 pela reunião do primeiro Landsgemeinde em Uri, em 1275 quando Llull elabora o pequeno tratado sobre as eleições, em 1387 quando Adhemar Fabri reconhece Genebra como uma República civil, nesse mesmo século, etc

No entanto a forma democrática havia sido caído em completo desuso após a afirmação dos Reinos Bárbaros no século VI. Ao menos quanto a forma e a macro estrutura política a ruptura parece ter sido absoluta.

O que nos leva a seguinte questão: Qual a fonte ou as fontes que levaram ao resgate de certos elementos da forma democrática a partir do século XIII e que culminaram com a reafirmação quase que total deste padrão a partir de 1789?

Extinguiu-se por completo entre as sociedades ocidentais ou europeias da alta Idade Média o espírito democrático semeado pelos antigos grego?

Refugiou-se em alguns setores? Em quais setores?

E quanto as formas. Lograram sobreviver nesses setores?

Como? Por que e em que medida?

Via de regra, até bem pouco tempo, era comum a opinião segundo a qual o 'espírito democrático' fora reencontrado nos livros antigos trazidos de Bizâncio ou exumados por algum humanista (em alguma biblioteca) a partir do século XV.

Os humanistas deram com a teoria ou a sugestão democrática em livros velhos e a partir dos livros velhos é que entraram em contato com o pensamento grego.

Por isso o ideal democrático Renasce (como todos os demais aspectos da cultura helênica pré Cristã) porque havia morrido no intercurso da Idade Média.

Destarte podemos falar numa extinção do ideal democrático ou da paixão pela liberdade política.

Muitos ainda hoje pensam exatamente assim.

Embora já contemos com algumas outras sugestões.

A primeira diz respeito a revindicação das liberdades comunais. Luta que é caracteristicamente medieval e que remonta no mínimo ao século XIII.

Como se vê, nem tudo na Idade Média é trevas, como juravam os pensadores de matriz protestante para os quais o papismo não era capaz de produzir cultura.

Há todo um histórico bastante complexo em torno de tais lutas habilmente detalhado a partir dos séculos XIX e XX.

Havia ali espírito democrático. Embora não possamos identificar com absoluta certeza donde tenha vido.

Importa questionar donde teria extraído as formas que assumiu.

É exatamente aqui que os estudos de Léo Moulin destroçando o véu dos preconceitos, parece lançar alguma luz.

Todavia antes de adentrarmos por este terreno gostaria de registrar a existência de uma corrente de pesquisadores que busca demonstrar a existência de uma ligação entre as primitivas comunas do Sul da Europa e a sobrevivência do municipalismo romano em certas regiões de Portugal e da Espanha. Que o sentido do municipalismo seja comum em algumas regiões daqueles países é fato estabelecido, que as raízes deste sentido tenham sido implantadas pela cultura romana também nos parece exato. Agora se alguma estrutura ou organização municipal daqueles rincões escapou as invasões germânica e muçulmana, chegando ao século XIII, é o que se deve demonstrar. No entanto não considero impossível ou absurda a sobrevivência de alguns municípios romanos e consequentemente da cultura municipalista sob a tutela de seus respectivos Bispos.

A partir dos séculos XII e XIII, quando as diversas culturas da Europa vão entrando em efetivo contato, este sentido teria se deslocado para outros lados (como o Sul da França e o Norte da Itália) e inspirado a luta pelas liberdades comunais. Ademais a sobrevivência de municípios e do espírito municipalista também teria sido possível em todo litoral da Itália e junto as cidades gregas do Sul, sempre disputadas entre o Império Bizantino e os poderes vizinhos.

No entanto ao que parece, podemos detectar a existência de outro nicho de formas democráticas e exatamente onde menos esperamos, no seio da toda poderosa e por vezes autocrática e por vezes opressora Igreja Romana.

Na esteira do citado Moulin estamos nos referindo as grandes ordens religiosas de caráter mendicante criadas a partir do século XIII, assim aos Franciscanos (1210) e  aos Dominicanos (1215). Ponto pacífico que ambas as ordens tenham optado por eleger democraticamente seus oficiais e por solucionar os problemas internos por meio de assembleias ou reuniões anuais cognominadas capitulares.

Quase todos os problemas das respectivas ordens era solucionado deste modo ou seja internamente, sem que a Cúria romana precisasse interferir. Somente a partir de Trento (sec XVI) é que os recursos a Roma foram se tornando mais e mais comuns.

No contesto medieval as ordens religiosas gozaram de ampla autonomia e optaram por criar e aprimorar uma estrutura bastante democrática do ponto de vista formal.

A respeito dos franciscanos os estudos na área ainda são bastante insipientes. No entanto, quanto aos dominicanos, muito material acabou sendo reunido nos últimos dois séculos e o saldo tem sido cada vez mais surpreendente. Basta dizer que o mecanismo do 'Impeachmeant' foi previsto e criado por eles.

Neste sentido há muito que se pesquisar, descobrir e sistematizar.

Uma coisa é certa. Todas as formas, regimes e sistemas de governo estão presentes nas diversas ordens religiosas: Temos assim o Federalismo Beneditino, com a autonomia abacial; a monarquia eletiva e constitucional dos jesuítas, o parlamentarismo dominicano, o presidencialismo, etc

Julgo se conhecida de todos e por todos (entre a gente culta) a dependência de Th Jefferson para com o Cardeal Roberto Belarmino em termos de teoria política. O próprio Schaff D S por sinal - e cuidando refutar a tese papista - refere explicitamente (Em 'Nossa fé e a de nossos pais' caput XXIX) que a leitura de Belarmino foi recomendada a Jefferson em 1823 por Madison. Ora Madison, co autor de O Federalista (Juntamente com Jay e Hamilton) é tido em conta de 'Pai da Constituição' Norte americana e teria buscado seus fundamentos na antiga República romana, no termo 'misto' de Políbio.
Aqui a fonte mais provável teria sido o Volume segundo das "Controversias" (Disputationes) em que trata especificamente da Igreja e dos concílios. De fato um volume das controvérsias de Berlarmino anotado por Th Jefferson e encontrado em sua Biblioteca acabou por impugnar duma vez por todas os sofismas de Schaff.

Dentre outras coisas o Pr Yankee pretendeu apresentar o cardeal papista como um defensor vulgar do absolutismo monárquico, esquecendo-se de que o campeão desta doutrina autocrática fora justamente o protestantíssimo rei da Inglaterra, Tiago I, o qual nada fica devendo a Hobbes. Belarmino muito pelo contrário dedicou duas de suas obras contra a pretensiosa teoria do soberano inglês e nelas susteve a doutrina da transmissão ou designação, bem como a do poder genérico. Admitindo que o objeto da soberania deve ser escolhido pelo povo. Portanto para o clérigo latino a autoridade passa de Deus ao Povo e deste ao rei ou aos governantes.

Naturalmente que o tema da democracia direta não ocorre a Belarmino da mesma maneira como não tem sido reeditado e posto nesses nossos tempos de internet e meios de transporte super desenvolvidos. Pelo simples fato de que a democracia pura já havia sido exposta as mais duras críticas, impugnada e desmerecida pelo historiador Políbio, partidário de uma forma mista capaz de incorporar, inclusive a forma monárquica (!!!). Cumpre observar ainda que nem mesmo o já citado Madison ousou discordar do historiador helênico, assumindo em certa medida suas críticas direcionadas a democracia direta. Era crítica do tempo e relacionadas com a experiencialidade das antigas cidades estado gregas, e prolongaram-se com maior ou menor fundamento até o aperfeiçoamento dos meios de comunicação e a criação da Internet, quando de fato tornaram-se obsoletas.

Dificilmente Belarmino teria sido capaz de ultrapassar tais limites. Todavia apresenta-lo como absolutista nos termos de Tiago I e Hobbes corresponde, no mínimo a uma boa dose de ignorância e ele certamente esta bem mais próximo de Madison e Jefferson a quem deve ter servido de fonte ao menos como expositor de sistemas.

Ocioso é recordar aqui a relação existente entre a teologia jesuítica e a nova escolástica hispânica e a escola tomista, o que nos remete mais uma vez a ordem dominicana e não menos a sua estrutura 'democrática'.

Agora se recuamos um século antes, i é para meados do século XII, topamos com algo por assim dizer monumental. Referi-mo-nos ao Capítulo geral de Citeaux, a grande abadia cisterciense. O qual congregava-se anualmente, reunindo os abades ou representantes eleitos pelas principais abadias europeias - apud 'Carta caritatis' - com o objetivo de solucionar democraticamente sobre todos os assuntos da ordem. Para L Moulin estamos diante do modelo embrionário de todas as assembleias políticas europeias representativas ou deliberativas. O que de fato nos remete a estrutura de um Parlamento contemporâneo.

Julgamos necessário ressaltar que as primeiras cortes portuguesas, congregadas em Coimbra, no ano de 1211 pelo rei Afonso II também são posteriores em quase um século ao Capítulo geral de Citeaux e que a presença desta ordem no Reino era bastante antiga e vigorosa. Pois havia sido trazida e este pais pelo próprio Conde D Afonso cerca de 1100, datando de 1178 a grande abadia de Alcobaça.

O exemplo de Citeaux foi tão clamoroso que no mesmo ano em que João sem terra assinada a carta de direitos (1215) o IV concílio de Latrão determinou que todas as ordens religiosas existentes realizassem um capítulo geral a cada ano. 'Dicionário da Idade Média' H R Loyn p 94 

O estatuto democrático dos cistercienses, elaborado por Harding antes de 1134, foi editado e comentado por J M Canivez (Vol I 1933) sob o título de: "Statuta capitulorum generalium ordinis cisterciencis"

"As eleições 'seculares' tiveram seu ponto de partida no sistema posto em prática pelos canonistas medievais com o objetivo de escolher os oficiais da Igreja." Helmholz VI

Agora que temos para além de 1100???

Continua



Nenhum comentário: