quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Fontes medievais da vida democrática II > Cristianismo primitivo e democracia




Cerca do século XIII desta Era uma Europa em vias de unificação cultural assistiu o desabrochar, ainda que tímido, de diversas estruturas democráticas: A luta pelas liberdades comunais, as cortes lusitanas, o Landsgemeinde suíço, a Magna Carta inglesa, as reflexões de Llull sobre as eleições, a firma de Adhemar Fabri, as reflexões de Nicolau de Cusa, etc

De modo geral foi este desabrochar precedido pela estruturação da Ordem cistercience ou de Citeaux em formas democráticas a partir de 1130. Embora a codificação de tais regras possa corresponder a uma prática consuetudinária que remonte a 1099. Neste caso a irradiação das formas democráticas teria irradiado de Citeaux.

É assim que chegamos a 1100 e nos perguntamos sobre o que havia de democrático em termos de civilização Ocidental.

Em aqui chegando - a alta Idade Média - temos de examinar a única organização formativa em termos de cultura. Estamos falando da Igreja romana, assaz frequentemente associada ao autoritarismo, e ao menos até 1054 enquanto Unidade Particular vinculada ao Catolicismo Ortodoxo.

Grosso modo podemos afirmar que antes do ano 800 ou mesmo 1000 tanto papas quanto reis eram eleitos ou pelos nobres ou pelo povo e que o mecanismo da hereditariedade era pura e simplesmente desconsiderado no caso dos últimos. Dar-me-ei por satisfeito com citar o cargo ou função mais importante da I Média, o de Imperador ou titular do Sacro Império Romano Germânico, cargo que era habitualmente provido por eleição.

A eleição aristocrática do papa romano por seus cardeais remonta justamente ao século XIII. Isto porque durante dois ou três séculos foi praxis entre os papas designar sucessor para seu próprio posto, isto quando o titular do papado não era arbitrariamente imposto pelo poder secular.

No entanto, caso recuemos até os primórdios da Idade Média, e - o que de fato importa - a veneranda antiguidade (século IV) damos com todos os patriarcas das Igrejas, inclusive o papa romano, sendo eleitos pelo clero juntamente com o corpo dos fiéis da diocese. Por isso que Ambrósio, o grande; e Agostinho de Hippo regium foram eleitos por aclamação.  E assim todos os Bispos da Igreja, numa perspectiva absolutamente democrática. Ao menos até o século VII desta Era foi a Igreja antiga, episcopal, Católica ou Ortodoxa uma organização essencialmente democrática ou popular. Embora a doutrina não fosse objeto de deliberação comum, mas fixada pela tradição e imposta pela autoridade, a administração tanto dos bens quanto dos juízos Éticos era exercida quase sempre em termos democráticos.

Nem mesmo a condenação dos heréticos e fixação de leis canônicas pelos grandes Concílios, ditos gerais ou ecumênicos. Assim após as discussões levadas a cabo sobre a conduta do presbítero Ario seguiu-se o sufrágio dos Bispos de que resultou sua condenação. E podemos dizer o mesmo sobre a questão da data da Páscoa e sobre todas as outras. Quando não tocavam ao Dogma ou aos mistérios da fé era a questão examinada com toda liberdade e debatida até a exaustão, seguindo-se a votação e a deliberação. Tal o roteiro de todos os Concílios, mesmo os da igreja romana até o século XIX. Pelo que a estrutura dos Concílios, bem como a dos sínodos ou concílios particulares (provinciais ou regionais) foi sempre marcadamente democrática. No sínodo todos eram ouvidos, as questões eram discutidas e os pareceres votados.

Aparentemente todas as decisões dos sínodos e concílios foram tomadas miraculosamente, apelando-se a inspiração divina ou arbitrariamente impostas numa perspectiva vertical. Nada mais equivocado. Eles de fato rezavam impetrando ao sagrado uma decisão unânime e capaz de afastar toda e qualquer possibilidade de 'cisma'. No entanto acreditavam que a tal 'inspiração' expressava-se pelos votos e decisão comum da maioria e não por imposições arbitrárias.

Agora qual teria sido o ponto de partida para tal prática?

Grosso modo os Santos Padres e doutores da Igreja vinculam a estrutura democrática conciliar ao exemplo dos próprios apóstolos consignado no livro dos Atos dos Apóstolos, que é a crônica da Igreja Apostólica elaborada pelo evangelista S Lucas. Desta obra tomaram os padres dois fragmentos com que justificar a opção democrática. Primeiramente a escolha, por sorteio, do sucessor de Judas, o Traidor. O qual não foi escolhido por Tiago, João, Pedro ou qualquer um dos apóstolos, mas objeto de sorteio, segundo o costume dos sacerdotes judeus que costumavam lançar as sortes com o objetivo de escolher os sacrificadores do dia.

No entanto o exemplo mais sólido foi tomado a narrativa sobre o assim chamado 'Concílio de Jerusalém' congregado pelos idos de 45 com o objetivo de decidir a respeito dos judaizantes i é daqueles que desejavam impor a circuncisão e consequentemente toda lei mosaica ou Torá, aos seguidores de Jesus Cristo vinculando a igreja a sinagoga. A decisão atribuída ao influxo do Espírito Santo foi igualmente comum, dela participando toda comunidade, apóstolos, discípulos, doutores e simples fiéis.

Tais os pressupostos neo testamentários da praxis conciliar.

Diante disto fica bastante fácil perceber que dos grandes Concílios e Sínodos as ordens religiosas, enquanto organismos autônomos na vida da igreja, sacaram as capitulares, que são como que sínodos regulares atinentes a cada uma delas. Entrando a eleição na vida monástica.

Paralelamente a esta assimilação também o provimento de cargos nos diversos mosteiros teve de pautar-se em algum tipo de realidade pré existente e este tipo de realidade foram as eleições episcopais e patriarcais. Tal e qual os Bispos, arcebispos e patriarcas também os abades e demais oficiais das casas religiosas passaram a ser eleitos e isto desde os tempos de Bento de Nursia i e do século VI. Alias o próprio Bento é representado num cartulário de Monte Cassino como tendo sido eleito abade, a instrução acompanha um desenho representando sua eleição.

Outro testemunho não menos eloquente é a regra de S Bento a qual determina que os abades e oficiais sejam eleitos pela comunidade, ao menos por regra de prudência, tendo em vista evitar as intrigas e disputações pelo poder.

Por outro lado, em termos de Constituição ou de limitação formal a um poder arbitrário, temos outro testemunho luminoso na 'regra' de cada ordem religiosa, a qual era por assim dizer sua lei. Basta observar com que empenho S Francisco de Assis pugnou pela aprovação de sua regra e empenhou todos os esforços para que fosse sabida e posta em prática por seus filhos espirituais.

Numa ordem religiosa qualquer, todos os membros do abade geral e dos provinciais até o irmão porteiro, sem exceção, deviam observar a regra e velar por sua estrita observância.

Chegando a este ponto podemos ensaiar um roteiro das formas democráticas, desde sua tímida manifestação até seu pleno florescimento no plano secular:

Círculo apostólico (seculo I)> Eleições de Bispos e patriarcas (seculos II a VII) > Votações conciliares (século IV a...) > Eleições na ordem de S Bento (século VI a...) > Capitular geral e anual dos cistercienses (século 1130) > Formulações de regras religiosas imbuídas de espírito democrático (século XIII) > Primeira afirmação de estruturas democráticas no plano secular (século XIII) >...

Curiosamente, no plano secular, a tendência principiou a inverter-se quase que de imediato.

Antes de tudo porque o princípio eletivo foi sendo paulatinamente abandonado no decorrer do século seguinte (XIV) e cedendo passo ao princípio da hereditariedade.

Do mesmo modo ao cabo de alguns séculos as Comunas ou cidades livre foram somando forças e passando a formar reinos cada vez maiores.

Enfim porque a própria autoridade religiosa, assumindo ela mesma um aspecto arbitrário e absolutista extinguiu as eleições episcopais, passando a nomear os Bispos.

Da convergência entre estes três fatores surgiu um novo modelo, o absolutismo.

Ficando cortadas pela raiz e frustradas as ambições democráticas e todos os ensaios realizados a partir do século XIII.

Alguns no entanto, como o landsgemeind, as cortes lusitanas e a carta magna inglesa chegaram até nós.

Como testemunhas de uma Era em que ao contrário do que se diz e divulga hoje o espirito Cristão ou melhor o espírito Católico conservou o antigo espírito helênico e alimentou as tais ambições democráticas, dando a compreender que nem sempre foi o veio a ser no século XIX e que não é incompatível com ethos político liberal.

De fato fé ou religião alguma, seja a hebraica, a protestante e menos ainda a islâmica, incorporou e fomentou em tão alta medida tais princípios. Fazendo-se veículo e porta voz do antigo ideal helênico de policracia.

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