segunda-feira, 17 de abril de 2017

Sobre a eclipse do municipalismo as vésperas da queda do Império romano


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Texto base para reflexão: M Guizot 'Sobre o regime municipal no Império romano durante o século V..."


Foi duplo o gênero de fatores responsáveis pela queda do Império romano e com ele da expansão civilizacional antiga. Cuja fonte, deita raiz tanto no Egito quanto na Suméria, tocando a 3.500 a C.

O primeiro tipo foi suficientemente expostos por diversos autores materialistas ou marxistas e devemos busca-lo na estrutura econômica.

Pautada no escravismo, na pilhagem e consequentemente, nas guerras de conquistas.

Tendo atingido os extremos ocupáveis do mundo antigo, não pode mais este império expandir-se. O Norte da Europa, o Sul da África, As estepes russas e os desertos da arábia eram inviáveis. A única saída possível, para o extremo Oriente - Índia e China - achava-se bloqueada pelo novo Império persa. O acesso ao comércio tornou-se precário e além disto as distâncias eram consideráveis.

Diante disto apresentavam-se diversos problemas:


  • Como escoar a produção se as vias comerciais eram limitadas?
  • Como manter o preço estável quando o elemento escravo, principiando a minguar por falta de guerras, tornava-se cada vez mais caro? E -
  • Como administrar ou gerenciar de modo orgânico a produção de bens - criando demandas e mercados internos - se, aquele tempo os meios de comunicação e mesmo de transporte, eram demasiado limitados?

Devido a cultura escravista os cidadãos mais humildes achavam vergonhoso trabalhar preferindo viver de esmolas a custa do Estado. Do que resultou um entorpecimento irreversível. Para não poucos romanos, o ideal de vida era justamente ser sustentado pelo governo através de 'rações'. Não cogitavam em produzir e menos ainda em defender as fronteiras do Império ou combater.

Ademais por que raios expor-se a tantos e tão graves perigos nas fronteiras em torca de soldo, se rações gratuitas - O pão e circo - estava no acesso de qualquer um?

Considere-se agora que a míngua do elemento militar encarecia o soldo e consequentemente as despesas. Ficando sempre mais barato contratar bárbaros romanizados - os godos - para defender o Império (!!!). Convertendo-se o exército, majoritariamente germânico, num estado dentro do estado.

Para agravar ainda mais a situação, o abolicionismo Cristão, avançava a passos largos. De modo que o triunfo da ética e da justiça, pressupunha e de fato acentuava ainda mais a crise econômica, produzindo a redução do elemento servil e, evidentemente o aumento da inflação.

As despesas com importação de trigo para as rações e com o exército vão se tornando cada vez maiores. Ao poder central a única saída viável - para manter a ordem interna e a paz nas fronteiras - foi aumentar os impostos. Como nem os Senadores multimilionários e tampouco os cidadãos comuns e escravos pagavam impostos, incidiram eles mormente sobre a até então fecunda classe média citadina (Ou se querem pequena burguesia urbana) compostas por pequenos e médios comerciantes e funcionários públicos.

Também o pequeno e médio proprietário rural sentiu-se onerado.

Por todas as partes do Império foi este cidadão médio, na cidade ou no campo, taxado e responsabilizado pela crise.

Até que ao cabo de cem ou cento e cinquenta anos, esta categoria de cidadãos estava virtualmente morta! E com ela o municipalismo e a vida urbana ou citadina no Ocidente, com raras exceções (Algumas cidades litorâneas mantiveram-se devido a suas condições específicas de portos e ao comércio marítimo com a parte Oriental e viva do Império). Tombaram os até então fecundos municípios das Hispanias e das Gálias, sucedendo a ruralização a passos largos...

Quanto aos pequenos proprietários ou abandonavam suas terras e fugiam em demanda das grandes metrópoles - como Roma - na esperança de obterem 'rações' ou alienavam suas propriedades aos grande senhores e com elas suas liberdades. Segundo a antiga tradição do clientelismo... E punham-se a trabalhar no lugar dos antigos escravos tendo em vista a suficiência da 'Vila'.

Tudo isto supõem um cenário dramático de transformações sociais.

Consideremos que aquelas multidões esperavam ser alimentadas pela máquina imperial até o fim de suas vidas. Dela dependendo para obterem rações e sobreviver. E sequer imaginassem que aquele Império miserável e desguarnecido pudesse vir a cair! A queda do império e o desamparo era algo que se não lhes passava pela cabeça. Imaginavam que o trigo caia dos céus e que semelhante estado de coisas se manteria 'ad infinitum'.

Engano fatal.

E no entanto quanto menos braços nos campos menos suprimentos e quanto menos suprimentos havia, mais caros ficavam... Resultando disto um círculo vicioso.

Diante disto aprouve ao governo central, ao tempo de Diocleciano, impedir que as pessoas continuassem a fugir, demandando as grandes cidades. Fazia-se mister reduzir as liberdades, com grande agravo da cultura ancestral. Desde então os pequenos camponeses foram legalmente fixados a terra. Enquanto os habitantes das cidades foram obrigados por lei a perpetuar os ofícios exercidos por seus pais e antepassados.

Em situações de crise, as liberdades tendem a ser reduzidas ou eliminadas. Foi exatamente o que se sucedeu no Império a partir do ano 300 desta Era.

Todavia, apesar de tantos e imensos sacrifícios a condição do Império não melhorava e ele não dava mostras de recuperação.

Do que resultou, por fim, a perda de sentido.

Nas últimas décadas do século IV, quando até mesmo a distribuição das rações principio a falhar, - Dando espaço as primeiras fomes que caracterizarão todo período subsequente - veio a desilusão. Não poucos compreenderam que a situação havia se invertido e que agora o Império é que se mantinha e sustentava as custas do povo. A maior parte da população começou a encarar o até então 'divino' gênio de roma como uma espécie de diabo ou gênio do mal. Tomaram consciência sobre sua condição de oprimidos, sentiram na pela o despotismo dos césares, perceberam que já não passavam de ovelhas famintas, esqueléticas e vulneráveis.

Foi quando desejaram a destruição do Império.

Pois como se lhes faltasse pão, encaravam todo patrimônio cultural até então acumulado como coisa supérflua ou como luxo.

Onde falta pão a cultura não faz sentido! E perde-se.

Num determinado momento do século IV o Império passou de mocinho a vilão no imaginário popular.

Os próprios mandatários, pressionados pelos godos que se achavam nas fronteiras, perguntaram a si mesmos se não estava na hora de injetar sangue novo nas veias do antigo império com o intuito de salva-lo. Quem sabe os godos ocupando postos de trabalho produzissem renda? Foi o que pensaram os conselheiros do Imperador Valente, pelos idos de 376.

Situação em que parte do povo, certamente, já encarava os bárbaros - compreenda-se o godo ou bárbaro civilizado/romanizado - como libertadores!

É clássica a passagem de Amiano Marcelino descrevendo como o Imperador Valente não apenas abriu as fronteiras a tal povo, como dispôs que a máquina imperial - Com seus barcos e carros - auxiliasse os godos na travessia do Danúbio. O que ele esta introduzindo nas veias do império é veneno mortal conjecturou no velho cortesão. Um ano depois Valente era batido pelos Godos em Andrinopla e queimado vivo por eles.

Após o desastre de Andrinopla, Teodósio - o 'Último dos romanos' - sempre intimidado por Alarico, representou apenas um 'interegno' antes do 'Fim do mundo', em 410, quando os Godos conquistaram a antiga capital do Império roma.

A situação descrita por Guizot e ao que parece jamais desmentida pela arqueologia ou a paleografia, diz respeito principalmente a apatia com que os cidadãos 'romanos' da parte ocidental do Império, assistiram sua queda sem sequer dar mostras de revolta ou registrar as consequentes lamentações pela ordem ou regime que chegava ao fim. A passividade face a queda do quadrisecular foi patética. É como se ninguém mais aspirasse por sua sobrevivência. Mais - é como se os antigos cidadãos romanos encarrassem os bárbaros germânicos como libertadores. Situação que tornou a repetir-se em diversas partes do Império Bizantino por ocasião da primeira Jihad Maometana no século VII.

Segundo o citado autor francês, o fim inglório do municipalismo e a adoção, por parte do Império, de um regime cada vez mais despótico e autocrático é que acarretou semelhante situação de revolta. Era um governo cujos custos estavam sendo maiores do que os benefícios. A um lado impostos e taxas cada vez maiores e a outro, decretos arbitrários, extinção das antigas liberdades e situação de extrema penúria. Os pais havia comido a carne mas os filhos do século IV estavam roendo osso. O governo romano ou melhor a existência do Império se tornará insuportável. Era uma máquina que já não funcionava mais, e onerava, e oprimia os próprios cidadãos...

Foram as situações de tirania ou despotismo que levaram primeiramente os latinos e posteriormente paste dos orientais a encarar os invasores: Aqui teutônicos e ali islâmicos, como libertadores. Em que pese a destruição da cultura. Pois como já dissemos a cultura só faz sentido para quem tem a barriga cheia, assim, faltando pão...

Em semelhante conjuntura um único elemento deu mostras de preocupação, por compreender a dinâmica da cultura. O alto clero Católico, assim os Bispos Sinézio de Cirene e Agostinho de Hipona, o anacoreta Jerônimo de Stridon, o estudioso Sidônio Apolinário. Estes sabiam que a antiga cultura estava ameaçada, que o arcabouço da civilização clássica, em parte incorporado pela Igreja, estava prestes a desabar e que um novo mundo estava prestes a surgir.

Lição de História a ser aprendida pelos governantes: Situações de angústia extrema convertem os críticos do regime, por piores que sejam em heróis.

Seja como for não é muito difícil compreender porque os latinos ou ocidentais equivocaram-se em sua apreciação.

O equivoco se deve ao fato de que os godos ou bárbaros da fronteira estavam já civilizados ou familiarizados com os costumes e as tradições romanas. O que eles não podiam ver ou perceber é o que estava por trás do movimento daqueles povos. O que não conheciam é o caráter das tribos mais afastadas como  Vândalos, Alanos, Suevos, Ostrogodos, Hunos, etc O que não imaginavam é que os Godos estavam sendo empurrados por povos tanto mais rudes e grosseiros.

A entrada dos Godos no Império certamente não causou maiores desastres. Não foram eles certamente que como os Hicsos do antigo Egito, vieram pilhando, incendiando ou demolindo tudo pelo caminho e deixando apenas ruínas após si. Em determinadas situações, como foi exposto por Dubos e Coulanges, o que houve foi apenas instalação pacífica ou acomodação. Assim nas Gálias onde estabeleceram-se os Francos, assim nas regiões ocupadas pelo Godo.

No entanto a entrada dos primeiros foi como a ruptura de um dique, cujas forças não podiam mais ser contidas. No encalço dos Godos e Francos vieram os Suevos, Alanos, Hunos, Ostrogodos, Vândalos; e não foi por acaso que o nome destes últimos foi identificado com a destruição e a selvageria. Após os Godos romanizados, o Caos. Após o Godo ter estendido a mão a seus parentes mais distantes a situação tornou-se insustentável e o Império romano do Ocidente foi varrido da face da terra como por um tufão.

E lá estão as ruínas do Capitólio e do Fórum para testemunhar este trágico evento.

A longo prazo aconteceu o que os Bispos e Filósofos temiam: Não apenas as escolas, bibliotecas, museus, pinacotecas, galerias de arte, templos, etc foram destruídos mas até mesmo as pontes, portos, estradas, fábricas, hospitais, etc Enfim toda estrutura urbana de uma realidade extinta. Retornando a maior parte da porção Ocidental do Império a antiga condição rural. A subsistência. Ao status de pequena comunidade auto suficiente. Em prejuízo do letramento, da Filosofia, das Ciências e artes. Do que resultou sensível rebaixamento em termos de qualidade de vida.

Se houveram sombras na Idade Média, foram estas trazidas pela migração e instalação do elemento teutônico e das revoluções por ele provocadas.

Evidentemente que nem topo equipamento cultural produzido pelos romanos e introduzido no Oeste da Europa se perdeu. Apenas parte dele e por algum tempo. Reduzindo a marcha da civilização e recompondo as coisas.

De modo geral o que podemos declarar sobre o sentir dos diversos grupos sociais as vésperas da queda do Império romano do Ocidente é isto:

  • Os Cristãos ao menos em parte haviam se deixado dominar por uma falsa ideia de martírio ou por um delírio místico em torno dele, ignorando supinamente as situações sociais e políticos que não apenas justificam mas exigem uma resistência em termos essencialmente Cristãos. Outra parte deles acalentava, ainda que inconscientemente, certo desejo de vingança face a estrutura política que havia massacrado os antigos mártires seus confrades. Eles desconfiavam da cidade do César, se é que não aspiravam por sua destruição.
  • A classe média fora praticamente extinta assim como as liberdades populares. 
  • O povo simples, que era o grosso da nação, amolecido pela distribuição de trigo, vinho, azeite e carne; além de ingressos para os espetáculos e roupa, sequer pensavam em trabalhar, quanto mais em lutar e combater. Eis porque Alarico as portas de Roma classificou-os como erva grossa prestes a ser ceifada ou como um rebanho de ovelhas gordas, tal sua inércia e passividade.
Como já dissemos não haviam mais escravos e o exército era ocupado e controlado pelos Godos.

Diante de tal situação como admirar-se de que este Império tenha desabado fragosamente ao mais leve toque?

Pois não se tratava mais daquele corpo saudável e pujante dos séculos I e II ou do tempo de Augusto com suas hostes de escravos, regime marcial, fartura de bens, estabilidade monetária, acesso aos Mercados mais distantes do Oriente, liberdades civis, municipalismo florescente, etc

Deste império já não havia nem sombra em meados do século III. Que dizer então dos anos 300 ou 400?

O que temos aqui é um corpo disforme, enfermo e achacado, pela falta de mão de obra, pela inflação, pelo valor excessivo dos impostos, pela extinção das liberdades, pela eliminação da classe média urbana, pela fixação do pequeno proprietário a terra, pelo deficit nos cofres públicos, pelo amolecimento das massas, pela morte da consciência cultural, pela angústia e insatisfação dos cidadãos, etc

Tudo quanto faltava ali era, tal e qual o antigo Império Persa, o aparecimento de um elemento forte o bastante para tirar proveito da situação. O fruto estava já maduro e só faltava quem o colhesse quando apareceram os bárbaros nas fronteiras. Em certo sentido o império romano já estava morto. Tudo quanto podemos dizer é que o Império romano derrubou a si mesmo pelo simples fato de nãos ser capaz de vencer a crise que nele se instalará desde o século III. Como um organismo vivo seu estado de saúde foi se agravando mais e mais até o óbito. Os bárbaros foram os coveiros deste grande império. Mas não daquela vida municipal intensa, que já havia deixado de existir, século e meio antes. 

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