Texto de Jean Patrick Grumberg - Site www.dreuz.info 24/08/2014 - Traduzido do Francês pelo profo Domingos Pardal Braz articulista deste Blog
Os primórdios da história do Islã apresentam aparentemente dificuldades insuperáveis pois são em grande parte resultado do que podemos classificar como 'história oficial' elaborada, com intuitos propagandístico e proselitista a partir dos nono e décimo séculos d C pelos califas abássidas.
Este, tendo tomado posse do imenso império legado pelos Umayas, aspiravam sobretudo manter a coesão interna.
E havia uma forte razão para isto. Os milhões de seres humanos que se achavam sob seu poder não eram todos muçulmanos, mas judeus, zoroastrianos e em grande parte Cristãos. E, ao contrário do Islã tais credos achavam-se intimamente relacionados com as civilizações do passado e a cultura antiga, levando grande vantagem intelectual. Apesar de terem sido subjugados a força pelo conquistador árabe, os vencidos não estavam disposto a abrir mão de suas identidades, podiam inclusive debater com os vencedores e demonstrar a natureza primitiva e grosseira do islã.
O FIASCO MUTAZALITA
O vencido, mesmo sem saber, quase conquistou seus conquistadores, pois a corrente da Mutazila, por muito pouco não mudou o curso da História. Professando a ideia de um Corão criado e não eterno ou imutável como o próprio Deus, alguns intelectuais muçulmanos acabaram se deixando conquistar pela Filosofia Clássica.
As obras de Platão e Aristóteles induziram alguns deles a introduzir os conceitos de racionalidade e livre arbítrio na nova fé. Evidentemente que a Mutazila não teria se afirmado não fosse a imensa miséria doutrinal e intelectual do islã a par da forte influência Cristã. Para quem estava na posse do poder era evidente que a fé islâmica estava em desvantagem, recuando-se e abandonando a arena das ideias.
As obras de Platão e Aristóteles induziram alguns deles a introduzir os conceitos de racionalidade e livre arbítrio na nova fé. Evidentemente que a Mutazila não teria se afirmado não fosse a imensa miséria doutrinal e intelectual do islã a par da forte influência Cristã. Para quem estava na posse do poder era evidente que a fé islâmica estava em desvantagem, recuando-se e abandonando a arena das ideias.
(Ao menos em algum momento houve real ameaça de helenização por via do Cristianismo, em especial do aramaico - Siríaco e Assírio; e depois pelo Bizantino) O parentético é nosso!
Da mesma forma como o vácuo antes existente foi preenchido pelo corpo das leis islâmicas ou sharia, havia a real necessidade de preencher do mesmo modo o vácuo doutrinal ou teológico e a própria estabilidade o Império o exigia. Os mutazilitas puseram-se a elencar argumentos favoráveis a tese de um Corão criado e portanto contingente e sujeito a sucessivas readaptações. Eles estavam cônscios sobre a existência de diversas versões contraditórias do Corão e estavam dispostos a discutir honestamente com seus rivais judeus e Cristãos.
Assumiram a fragilidade dos textos sagrados e demonstrando coragem e honestidade intelectual optaram por ir além da letra do livro permitindo que a razão humana fixasse um sentido melhor. No entanto este movimento de vanguarda, suscitando o pensamento crítico, não pode deixar de suscitar discussões e tumultos; o que o poder político estabelecido menos queria. O pretexto para a reação surgiu após um califa mutazila mais fervoroso ter recorrido a força para reprimir os mais arabizantes e tradicionais.
Posteriormente, quando os tradicionais, favorecidos pelo clero, retomaram o poder a perseguição religiosa estourou violenta. Sob a inspiração dos imames Achari e Gazali a mutazila foi simplesmente exterminada ao cabo de um século, e nem mesmo as ideias dos mutazilitas sobreviveram a eles.
Posteriormente, quando os tradicionais, favorecidos pelo clero, retomaram o poder a perseguição religiosa estourou violenta. Sob a inspiração dos imames Achari e Gazali a mutazila foi simplesmente exterminada ao cabo de um século, e nem mesmo as ideias dos mutazilitas sobreviveram a eles.
A crítica dos cristãos
Esta controvérsia principiou no século VIII, cem anos após a morte de Maomé. Até então, os numerosos manuscritos cristãos que descreviam a religião dos conquistadores referem parcamente a qualquer texto sagrado. O Islam em seus primórdios não estava fundamentado em escrituras ou exegese e o conteúdo da fé não está definido. E ele não passava duma forma sincrética em que entravam elementos do paganismo árabe, tradições talmúdicas e alguns elementos de doutrina Cristã.
Abd el Massih al Kinda (Banu Kinda) é um dos primeiros polemistas Cristãos. Floresceu pelos idos de 820 e focou sua crítica no texto do Corão alegando ter sido ele criado. Eis o que ele declarou: Após a morte de Maomé, as lutas entre Abu Bakre e Ali levou este último a vindicar seu direito a sucessão. Um dos meios que ele encontrou - Para adquirir legitimidade - foi mandar escrever os fragmentos dos oráculos ou palavras de Maomé num códice. Isto serviu de pretexto para que os demais membros da Shahaba i é os companheiros do profeta, compusessem também eles diferentes versões do Corão, a ponto de surgirem tantos corões quanto cabeças.
Diante disto Ali angustiado, voltou-se para seu predecessor Otman rogando que pusesse fim aquele indecoroso estado de coisas. Eis a decisão de Otman: Decretou que todos aqueles códices e versões fossem levados até ele e mandou queimar todos, inclusive o de Ali conservando apenas quatro, cujo texto canonizou. No entanto como ainda circulassem diversas cópias em versões em Madaim, Hajjaj ibn Yousuf, que era válido sanguinário, sentindo-se turbado diante de tantas controvérsias e discussões, mandou reunir todas as cópias restantes e queimar tudo. Não sem antes ter tomado as parecidas, canonizadas por Otman, e alterado diversas passagens e corrigido o texto, produzindo uma versão autorizada em seis cópias.
Diante de tais condições como demonstrar materialmente a diferença entre o conteúdo original e as versões dadas a luz posteriormente? Como rastrear um conteúdo original que foi suprimido? Como estabelecer uma crítica do livro?
Diante de tais condições como demonstrar materialmente a diferença entre o conteúdo original e as versões dadas a luz posteriormente? Como rastrear um conteúdo original que foi suprimido? Como estabelecer uma crítica do livro?
(Sendo assim falar em Unidade do Corão é muito fácil não?) Parentéticos nossos!
No entanto a crítica de Al Kinda não parou por ai. O conteúdo do Corão não foi poupado e o califa Mutazila Al Mamun teve de engolir da parte dele as seguintes palavras:
"Tudo quanto disse sobre o Corão são fatos e as evidências são de teu conhecimento. Para tanto demonstramos que o texto desse livro é desorganizado, confuso e incoerente. As diversas passagens são contraditórias e sem qualquer sentido. Como, sem trair sua ignorância, podes apresenta-lo como mensagem revelada e divina semelhante as de Moisés e Jesus? Certamente qualquer pessoa com um pouquinho de bom senso haverá de tirar tais conclusões a menos que ignore os rudimentos da História e da Filosofia. Eis porque não abandonamos nossa fé e não nos deixamos mover por tão falaciosos argumentos."
"Tudo quanto disse sobre o Corão são fatos e as evidências são de teu conhecimento. Para tanto demonstramos que o texto desse livro é desorganizado, confuso e incoerente. As diversas passagens são contraditórias e sem qualquer sentido. Como, sem trair sua ignorância, podes apresenta-lo como mensagem revelada e divina semelhante as de Moisés e Jesus? Certamente qualquer pessoa com um pouquinho de bom senso haverá de tirar tais conclusões a menos que ignore os rudimentos da História e da Filosofia. Eis porque não abandonamos nossa fé e não nos deixamos mover por tão falaciosos argumentos."
Passados quase dois séculos a crítica de Al Kinda não envelheceu nem perdeu seu valor.
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