sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Pelos caminhos traiçoeiros do positivismo

Resultado de imagem para S Freud
O supremo 'homem póstumo' do século XX fez muito mais do que desmistificar a sexualidade humana, sendo suas concepções Psicológicas prenhes de ilações Epistemológicas, Antropológicas e Sociais




Nas últimas palavras escritas por nós no artigo anterior salta a vista que o legítimo pai do positivismo, enquanto negação radical e arbitrária da metafísica ou melhor da teodicéia, foi o alemão Kant e não o francês Comte. 

No entanto o que para os alemães, ao menos para os irracionalistas luteranos, jamais chegará a ser novidade, do outro lado do Reno produziu frenesi. Isto pelo fato dos franceses terem tentado, segundo sua tradição cultural, assaltar a Filosofia e produzir uma metafísica ateia e materialista, o que como vimos redundou em total fracasso. Doravante tiveram os francos de se submeter ao império dos germânicos assimilando as doutrinas do sr Kant, tomando-as tanto mais a sério, aprofundando-as e ampliando-as.

Após Kant, Comte assumirá a negação da totalidade da metafísica, incluindo a negação da epistemologia, da gnoseologia, da Ética e da Filosofia como um todo, a qual pretendeu substituir justamente pelo que Hume negará e o alemão restabelecerá, a ciência. Até que ponto Comte foi capaz de perceber que condenando toda metafísica condenava seu guru não o sabemos. Quis ser mais papólico que o papa ou mais kantiano do que Kant e o foi. Desta radicalização de posições surgiu toda essa mística indigesta em torno da ciência e do progresso a que chamamos positivismo... Na Inglaterra o positivismo recebeu o nome de agnosticismo e alguns temperos bretões.

No entanto ao que parece a Filosofia ou melhor a metafísica parece não ter levado em conta a interdição baixada pelos francos e continuou a existir como se nada tivesse acontecido. E isto a ponto de nas Alemanhas um certo Schopenhauer ter definido o homem como um ser essencialmente metafísico. Estranho teria sido caso a sútil disciplina inventada pelos gregos geniais vinte séculos passados, tivesse se submetido aos ímpetos do homenzinho de Koenisberga...

Destarte Comte se suas hostes não tiveram outra saída a não ser denunciar o conhecimento filosófico como relíquia dos tempos pretéritos e passar ao terreno da Sociologia, novo campo da ciência que tendo sido ocupado por eles recebeu toda carga do materialismo mecanicista comum ao tempo, e o que é pior, em termos de ciência. A bem da verdade a própria elaboração das ciências humanas como a História, a Sociologia e a Psicologia, no ambiente cultural do século XIX, foi dramática por ter de se conformar com os dogmas aprioristas do Positivismo ou ser posta fora dos meios acadêmicos, nos quais a ordem do dia era transplantar o método exato, quantitativo ou experimental 'in totum' se possível, para o domínio das Humanidades. A ciência devia ser toda ela não apenas material mas absolutamente matemática, exata e quantificável, ou não ser. Era um pressuposto que não se discutia, pois os positivistas maliciosos ou ingênuos, acreditavam ou fingiam crer que não havia nada além de fato a serem descobertos e que cada um deles caia magicamente seu seu devido lugar sem a necessidade que qualquer aparato conceitual ou esquema predeterminado de mundo. Claro que homem semelhante concepção, que beira o absurdo, foi já relegada a condição de velharia ultrapassada. Os positivistas no entanto, na mesma medida em que reconheciam a existência de um aparato conceitual pré existente em que encaixavam os fatos, abandonavam o querido Kant e aproximavam-se de Hume, indo de um extremo a outro e flertando com o subjetivismo e o relativismo. Outro não foi o roteiro do sr Popper...
Como Agostinho e Lutero que eram religiosos e fanáticos também os positivistas não se detiveram face ao absurdo.

Para nós importa saber que devido ao influxo do positivismo foi o imaterial ou ideal alijado das ciências humanas, as quais tiveram que assumir o aspecto de sistemas fechados a exemplo de uma máquina qualquer. Assim a máquina da Sociedade, assim a máquina da mente... Estava o determinismo mecanicista, enquanto epifenômeno do materialismo, na ordem do dia. Marx tendo lido D Holbach postula uma Sociologia economicista absolutamente materialista segundo a qual a totalidade da cultura, incluindo a cultura imaterial ou ideal, é resultado das relações econômicas de produção. É falso que tenha inventado o materialismo contemporâneo - cuja formulação deve-se antes aos liberais - mas inegável que tenha formulado a primeira teoria social cem por cento materialista. Outras Sociologias buscaram ser mais comedidas ou apenas materiais, sem que no entanto, qualquer uma delas - mesmo a de Weber - tenha ousado situar o fenômeno humano no contesto a que faz jus e reconhecer-lhe a importância. Para a Sociologia o homem continua inexistindo e não pode ser posto, ao lado dos fatos sociais, como uma força doutra natureza.

De modo que a batalha pela recuperação do humano tinha de dar-se noutro terreno, deslindado pelos alemães Th Fechner e Wundt, já em meados do século XIX, Referi-mo-nos a Psicologia, que é a ciência da mente humana. Como a medicina negasse insistentemente o mesmerismo e, por vezo materialista, ridicularizasse tudo quanto lhe era atribuído; após Puysegur, o grande Liebault, Bernhein de Nancy e mesmo J M Charcot puseram-se a estudar a auto sugestão, dando com o inconsciente - P Janet - ou com a mente, o que seriamente não podiam assumir enquanto filhos de um século positivista. De fato estes homens chegaram a fronteira do imaterial ou do ideal, a qual no entanto haveria de ser ultrapassada somente pelo Dr Freud com sua teoria não somática ou não psiquiátrica de neurosa e a Psicanálise, método introspectivo e dialético que fazia lembrar a confissão Católica.

Freud foi quem ousou abrir a tampa que os positivistas haviam colocado sob o alçapão da mente e descreve-la dinamicamente ou como relação de forças/instâncias, enquanto o modelo clássico ou formal compartimentava artificialmente nossas capacidades mentais separando assim o intelectual do volitivo. Freud na mesma linha que Kant, Nietzsche, Dilthey e outros teve esta separação por arbitrária.

Foi S Freud, o ateu, o materialista e o positivista que recuperou o homem todo para a ciência e iniciou a grande Revolução epistemológica e metafísica, o que por si só já nos revela o drama desse gênio sucessivamente apontado como incoerente. Este homem por natureza e cultura é que deveria ter concebido e formulado o behaviorismo ( de J B Watson tbém conhecido como Psicologia rasa ou comportamental devido a seu viés materialista). Mas dá com a Psicanalise. Este homem que deveria ter passado a vida dissecando cérebros descobre a mente ou o elemento imaterial posto de lado desde 1700... Este homem deveria ter se contentando com os fenômenos externos de consciência, mas deduz a existência de um inconsciente ideal. Este homem que não cre em alma ou imortalidade foi quem descobriu a instância do Eu a que não temos acesso. Este homem inicia a exploração de nosso universo interior, de nosso eu... e cria a Psicologia profunda.

Observem quem era Freud e o que fez e deduzirão por sua obstinação e probidade. Eis um homem que se deixou levar por suas pesquisas e constatações contra seus postulados a ponto de converter-se na contradição ambulante.

Em certo sentido até podemos dizer que a Psicologia só se torna Psicologia com S Freud porquanto antes não passava de apêndice da Psiquiatria e por ext da medicina. De fato, todos os 'psicólogos' até J M Charcot investigavam o Psicológico sempre em conexão direta com o Somático ou melhor dizendo com o cérebro, os nervos e a medula. Assim o eminente Paul Broca. E não se cogitava no contrário. Charcot estava convencido de que suas pacientes tinham algum defeito estrutural, orgânico ou físico responsável pela condição neurótica. Teve no entanto de convir que tal defeito não podia estar situado nos membros e foi apenas uma questão de tempo para que seus conhecimentos em matéria de fisiologia o fizessem supor que inclusive o cérebro delas achava-se em ordem, suposição que o molestava enquanto positivista. Seja como for achou por bem colocar de lado toda esta questão e continuar buscando pelas supostas anomalias ou defeitos orgânicos, os quais jamais encontrou. Também, morreu logo depois e Freud é que ficou com a pulga atrás da orelha.

Freud foi ao encalço da pista e pode comprovar que os corpos e cérebros estavam sãos enquanto a mente mesma achava-se deteriorada e deteriorada atuava sobre o corpo, produzindo falsos sintomas ou falsas doenças, as ora chamadas enfermidades psico somáticas, enfermidades cuja gênese encontra-se no eu ou na mente, mas cujos efeitos manifestam-se concretamente no corpo. Eis o que Freud descobriu, que não é apenas o corpo que atua sobre a mente ou o comportamento através de suas glândulas e hormônios. Mas que em contrapartida também essa mente ou esse eu atua sobre o corpo físico danificando-o. Eis o que Freud, o materialista, descobriu.

Desde então forcejou nosso homem por conhecer melhor essa mente, seus recônditos e seus achaques, produzindo dúzias de obras interessantíssimas a cabo de meio século.

Agora eu vos pergunto amigo leitor? Que resultou disto? A conciliação entre Psiquiatria e Psicologia numa teoria realista??? A paz? A concórdia???

Nem bem começamos o século XXI e a paz ainda parece estar muito distante de ser alcançada neste terreno. Terreno em que Psicólogos e Psiquiatras ainda buscam afirmar suas posições radiciais; idealismo crasso aqui e materialismo ali... Os materialistas como já era de se esperar denunciaram a psicanalise como essencialmente charlatanesca e criaram seu domínio que é o do behaviorismo legatário da reflexologia pavloviana. Via de regra os Psicanalistas e psicólogos clássicos - como os da gestalt - folgam ignorar as contribuições elementares do behaviorismo e remetem seus afiliados a psiquiatria. Em diversos contextos culturais psiquiatra e psicólogo ainda trabalham separados e em oposição um ao outro.

Por outro lado não puderam Psicanalise e psicoterapias derivadas continuar sendo supinamente ignoradas pelos meios acadêmicos. Queremos dizer com isto que pela primeira vez na História foi o monopólio acadêmico do positivismo quebrado e uma doutrina que não se reconhece a si mesma como puramente material e menos ainda como materialista, pode enfim obter o justo reconhecimento ao menos de parte da comunidade científica. Isto é claro só foi possível na Psicologia e não nas demais áreas das ciências humanas que permaneceram hermeticamente fechadas a simples possibilidade do ideal. Grosso modo a luta jamais cessou, pelo simples fato de que um Eysenck ou um Silva Mello jamais baixaram a guarda contra o herético da Psicologia. Importa saber que para certo número de psicólogos a psicanalise não é ciência e nada teem de científica. Tal a opinião de K Popper.

O positivista verdadeiro no entanto é exigente, de modo que um deles acaba a escrever a Dawkins negando em alto e bom som o seu caráter de cientista pelo simples fato de ser Biólogo e não Físico ou Químico. Positivista há para quem apenas as duas únicas categorias absolutamente exatas e invariáveis de conhecimento são científicas. Quem pensar então sobre a História? A História é mais técnica do que outra coisa, assim o Direito... Que pensar da Sociologia??? A Sociologia peca por editar simultaneamente um grande número de teorias... E da Psicologia??? A Psicologia lida com um fantasma a que chama mente ou com o inverificável... Enfim tudo isto cheira bem a metafísica. O positivistas completam a medida de seus postulados asseverando que o único tipo seguro e válido de conhecimento é o conhecimento científico... Portanto???

Tudo quanto sabemos de certo se dá apenas em termos de Física e Química... O resto é incerto e duvidoso.

Calculem portanto o ódio votado pelos positivistas a psicologia, a Psicanalise e sobretudo a S Freud por ter ousado ir afronta-los em sua Zona de segurança...

Arrematando:

"Freud teve a grandeza - nem querida, nem procurada, nem percebida por ele mesmo - de introduzir na Psiquiatria um elemento transcendente o qual jamais quis chamar de alma, embora o fosse pois achava-se ao mesmo tempo impregnado de materialismo positivista. E no entanto apesar do materialismo positivista este homem adota uma posição espiritualista. Desde então a psiquiatria e a medicina foram obrigadas a afastarem-se do modelo tradicional do recorte e da abstração forçada da doença para encarar o doente como um pessoa ou como um ser integral, oi que tornou possível o surgimento da teoria Psico somática, a qual vai pelos caminhos da antropologia." Juan Bautista Torello 1961 p 68 sg

"Queremos dizer com isto que a doutrina de Freud é rigorosa e fielmente antropológica e que a a partir dela o enfermo passa a ser encarado como uma pessoa no pleno sentido da palavra? Não. Freud foi um antropólogo a seu pesar. Queria ser apenas Biólogo ou Psiquiatra no máximo, mas há que reconhecer que o enfoque do enfermo como ser racional, livre e íntimo, noutras palavras, enquanto pessoa pertence formal e necessariamente - apesar de suas sugestões em sentido contrário - a concepção psicanalítica da patografia; sem ela Freud jamais teria conseguido compreender ou mesmo descrever 'freudianamente' sequer um de seus neuróticos. Por isso foi dito que com sua obra é que a patologia humana principiou a ser antropológica, depois de ter sido apenas cosmológica." Entralgo 1950 p 124 sgs

Freud por não poder desvencilhar-se por completo da ganga cultural positivista teve de carregar eternamente consigo o estigma da incoerência.

De um modo ou de outro foi ele que abriu a primeira brecha no muro com que o positivismo havia cercado artificialmente nossas ciências humanas e devemos lamentar sinceramente não ter a Sociologia encontrado o seu Freud, rompido com o mecanismo fechado, superado o apriorismo material e recuperado a pessoa humana, até o momento presente encarada como simples peça movida pela engrenagem social.

Todos estes desvios e equívocos começaram a cerca de dois séculos, ocasião em que o homem decidiu fugir da metafísica e voltar as costas para o incognoscível. Deus foi proclamado ultrapassado e a metafísica morta, sem que apesar disto a mística naturalista continuasse a produzir outras tantas entidades não menos exóticas: Assim a meta da Revolução, o ideal do progresso linear, o materialismo dialético, o patriotismo abstrato ou nacionalismo, a estatolatria, o Mercado, o lucro, a pureza racial, etc Cronos não cessa de abater Uranos e Zeus de fazer guerra a Cronos, e os deuses vão se sucedendo uns após os outros...

Nenhum comentário: