sábado, 23 de setembro de 2023

O pensamento equilibrado de Almeida Garrett no 'Testamento' de Sardinha

 




Abaixo reproduzirei alguns trechos bastante realistas e equilibrados do literato português Almeida Garrett sobre Conservadorismo e Progressismo ou ainda sobre Manutenção e Revolução. Trechos em que nosso homem, surpreendentemente, afasta-se de ambos os extremos, buscando por uma noção equilibrada de fluxo histórico ou buscando acompanhar a História ao invés de paralisa-la ou faze-la avançar.


Fazer a História parar, como querem os conservadores de vária cepa é impossível e nem mesmo as antigas sociedades egípcia e chinesa, que foram as mais estáveis ou o quanto possível conservadoras, lograram esse feito miraculoso. Posto que sendo vivas também elas se transformaram, sob diversos aspectos, nos séculos em que subsistiram. 

Fazer a História avançar, como aspiram os revolucionários e sediciosos até poder ser possível, porém sempre desastroso. Pois após o aparente avanço segue sempre um retrocesso ou recuo ainda mais grave. Semelhante ao movimento do arco descrito por V G Childe - Embora nesses casos seja recuo cego e sem ulterior avanço.

De fato ambos os extremistas> Conservadores e Progressistas, imutabilistas e revolucionários, paralíticos e avancistas; ignoram o que seja acompanhar o ritmo da História. De fato não sabem marchar em seu compasso. E se recusam a seguir o fluxo natural das coisas. Não querem caminhar em comunhão com o processo histórico mas altera-lo artificialmente seja travando-o ou acelerando-o.

Os Conservadores tem dificuldade invencível para compreender que o dinamismo é caráter essencial dos seres vivos em sua marcha evolutiva. Anti cientificistas parte deles permanecem fixados em modelos mitológicos absurdos como o fetichismo criacionista e decorrente fixismo... E fundamentam o erro sobre a ignorância ou a mentira. De fato o conservador nato é o fundamentalista religioso, com sua cosmovisão mágico... Desamparado pelo mito o conservador fica indefeso ou vulnerável diante dos fatos, posto que sendo vivas as sociedades invariavelmente mudam e se há algo de imutável e fixo é a mudança ou o fluxo.

Corpos vivos e sociedades formadas por corpos vivos e mentes não são animais empalhados, cadáveres ou múmias enroladas em faixas. Sociedades não são compostas por pedras ou estátuas mas por seres humanos, seres vivos e animais racionais providos de intelecto ativo. 

Compreende-se que o movimento de mudança seja gradativo, dando-se por meio de rupturas e permanências. Na medida em que as rupturas se vão acumulando acentua-se a diferença. A transformação nem sempre é acelerada ou rápida, todavia não deixa de ser certa. Transformam-se os seres humanos, e as sociedades, por eles formadas, acompanham tal transformação.

Tão insensato querer tudo conservar quanto querer tudo demolir, implacavelmente. Há que se ser crítico aqui. Há coisas que são dignas de ser conservadas, por corresponderem a seus fins, a legítimos fins e coisas há que de modo algum são dignas de serem conservadas, devendo ser destruídas... Parece-me que os direitos do trabalhador e a política protetiva deva ser conservada, como dever ser conservado o ideal de bem estar social correspondente a noção de bem comum. Como parece-me que a isenção concedida as agremiações religiosas que não mantém qualquer rede de serviços sociais e públicos deva ser revogada. 

Parece-me bom que o 'direito' ao duelo ou a licença para matar esposas adúlteras tenham sido canceladas pelo legislador. Como me parece digna de ser mantido o regime público a que chamamos SUS. 

Há portanto instituições e leis que devem ser conservadas - E quanto a elas é dever ser conservador... E instituições que devem ser demolidas e substituídas por outras mais elevadas e condizentes com as circunstâncias - E aqui se deve ser progressista... Adotar as divisas de conservador ou de progressistas como absolutas é verdadeira idiotice. Como é pura bobagem ser Revolucionário e contra Revolucionário, ao menos de modo geral - E tornamos ao genial Berdiaeff em oposição ao energúmeno Donoso Cortes papa dos contra revolucionários.

As vezes se pode apoiar alguma Revolução - Pois alguns ideais são dignos de serem apoiados e o problema das Revoluções é sempre o meio ou método. De modo geral melhor manter-se alheio a elas, embora não completamente alheio quanto a seus fins ou ideais. Problema das revoluções é a mística da violência, a qual atribuem a capacidade mágica de alterar radicalmente as coisas. E é ridículo, pois as grandes e relevantes transformações se produzem por meio da mudança de consciência, único meio porque se atinge a cultura e a realidade. 

Tanto pior ser contra revolucionário ou se opor a um evento inevitável (A Revolução é o que o sintoma é para um corpo enfermo - Berdiaeff) devido a incúria dos cidadãos. Deveriam ser as Revoluções evitadas institucionalmente por meio de reformas que adequassem as leis a realidade - Não sendo assim serão sempre fatais... Correspondem assim ao resultado se um pecado social ou comum, que deve ser suportado por todos com docilidade e paciência. A Revolução, quando virulenta, dever ser sofrida ou recebida como espécie de penitência, jamais combatida com armas como querem os demagogos.

Unicamente tem direito de critica-la os que buscaram sinceramente evita-las e esses quase nunca são os conservadores obstinados.

Quanto a violência ou a sedição já disse que esgotados os meios institucionais e sendo a situação insuportável, é perfeitamente legítima, tal e qual a guerra justa em caso de agressão. Apenas não se deve crer que a violência ou a sedição trarão alterações radicais ao corpo social. Caso erradiquem ou suprimam determinada situação de injustiça a violência cumpriu com sua finalidade - Mesmo porque constituindo sempre meio e jamais fim em si mesma, a violência, ou seu emprego jamais poderá ser condenada 'in totum' ou abstratamente. A violência sempre deverá ser considerada com relação a seus fins, portanto caso os fins sejam nobre também seu emprego será nobre - Claro que devemos excluir o campo da religião ou da fé, o qual segundo a Lei do Evangelho não admite o emprego da violência mas o da persuasão das liberdades. 

Observamos ainda que o emprego da violência jamais deve corresponder ao ataque ou a agressão mas sempre uma resposta a algum tipo de agressão como uma situação de injustiça. 

Feito tal prólogo passemos as doutas reflexões de Garrett:

"É a missão das Revoluções destruir: É uma lei, e de precisão eterna, a periodicidade desses cometas do sistema social: Jamais edificam ou constroem, criam ou reformam. Porém é a Sociedade imortal e as leis e condições elementares de sua existência perpétuas, assim, mais cedo ou mais tarde, das ruínas necessárias de uma Revolução, ressurgem os princípios insdestrutíveis para remodelar o que é essencial a vida de cada grupo humano, segundo seu modo de ser." Sardinha - 1942 p 88

"Sou eu retrógrado cronologicamente e não metafisicamente. Talvez que os senhores responsáveis pela Revolução não o compreendam... Mas assim sou, cronologicamente retrógrado. Pois aqueles que tudo deslocaram no nosso Portugal fizeram-no por mover EXTEMPORÂNEO E ANTECIPADO, destarte desejo eu retrogradar o país ao justo e razoável ponto em que deveriam te-lo deixado. Não o faço metafisicamente, porque tudo quanto sem grave risco e perigo podemos fazer avançar não ponho limites ao avanço." Id p 82

"Não venha o funesto sofisma que é o medo do passado impedir-nos de resgatar o quanto havia de bom, justo e livre - E que era muito. - nas instituições de nossos ancestrais." Id p 103

"Devemos confessar que neste ponto ao menos, era o antigo regime menos arbitrário do que o nosso, o qual, diante da Liberdade das tábuas da Lei que pusemos sobre um altar, estamos sacrilegamente imolando ao um bezerro de ouro dos nossos interesses e paixões. NÃO VALE A PENA SAIR DO EGITO PARA ISSO E ANTES VAGAR TANTOS E TANTOS ANOS PELO DESERTO, E PASSAR PELO MAR VERMEHO DE TÃO SANGRENTAS GUERRAS CÍVIS." Id p 106

Ocorre-me aqui o triste exemplo da ex URSS com seu despotismo totalitário e sua posterior desagregação - Tão copioso Mar de Sangue para isso: Expurgos de Stalin e retomada do modelo capitalista numa intensidade ainda maior...

Também se me ocorreu a Reversão da Revolução francesa após a fase Robespierriana cheia de promessas e conquistas - Desde então a França se foi reacomodando até a subida de Napoleão e a ascenção de outros régios potentados... Até cair nos tentáculos do Mercado, conforme o modelo de Albion... Tanta efusão de sangue para isso...

Poderia mencionar ainda a inacabável Revolução mexicana, com seus quarenta ou cinquenta anos de curso e decorrentes misérias - Para terminar no Nafta, em plena comunhão com o mesmo país que despojou-o do Texas e da Califórnia...

Certo é que as Revoluções sangrentas ou draconianas revertem sempre, a menos que conduzam a nova sociedade a um poder absoluto que prolongue o espetáculo terrificante. Não são - As Revoluções. - sólidas ou consolidadas porque ficam sempre na superfície da cultura, uma vez que não produzem consciência por meio da educação\formação. No fundo as Revoluções são sempre frágeis e seu legado discutível.

Tornemos porém a sabedoria de Garrett: 

"As nossas antigas colônias tinham um sistema de legislação antiga, obra dos séculos, e só as ordenações dos reis S Manuel e D Sebastião para a Índia tinham quase tanto a se estudar quanto as nossas Ordenações do reino... As legislações da primeira ditadura aplicaram indistintamente a todos aqueles países, tão diversos dos nossos, tão diversos entre si, o mesmo sistema de administração e regimento que já para nós mesmos era inconsiderado...

Veio a segunda ditadura, e remediou em grande parte os males da primeira, retrogradou (Como devia) a muito dos antigos métodos especiais e da legislação local daquelas terras. Mas todo esse direito anda por cá flutuante e vago; como não o há de ser por lá. Que fatal não pode ser aqueles estabelecimentos, cujo estado é já tão tomentoso, que fatal lhes não será que agora se lhes apareça por lá um novo regime e sistema que amanhã declararemos nulo e revogaremos. Que será se o governo ido nesta monção começar a estabelecer o regimento da província... e na próxima lá aportar outra com outro sistema e outras instruções..."

Alude aqui as sucessivas mudanças efetuadas na legislação por sucessivos plataformas e partidos por pura e simples questão de Ideologia, e inclusive as anulações ou revogações de leis que vigoraram em determinados governações.

Pois se é certo que mudanças sejam sancionadas é inconveniente e perigoso que hajam continuas idas e vindas - O que amiúde sucede quando após a governação de uma plataforma progressiva ou equilibrada, aparecem os sinistros conservadores querendo, a força de princípios ou (Que é infinitamente pior!) de livros religiosos ou bíblias, restringir as liberdades conquistadas pelos cidadãos e fazer a sociedade retroagir. Não há atitude mais danosa e desgastante para a legítima autoridade que essas idas e voltas. Por vezes é lícito ou melhor necessário, retroagir - Não sempre ou constantemente. 

Podemos portanto aquilatar o dano produzido pelo governo anterior ao tentar, quase por força de baionetas, fazer recuar nossa legislação ambiental apenas para agradar uns mineradores e fazendeiros i é a particulares. Digo o mesmo sobre os murmúrios em torno da Lei Maria da Penha ou da Lei menino Bernardo, as quais os tarados religiosos e fanáticos, aspiravam tornar mais lassas ou revogar em nome de seu deus. Isso sem falar na constante maquinação em torno da Legislação trabalhista destinada a proteger o trabalhador contra os desmandos dos que detém o poder econômico e arbitrário.

Bem se vê que o que é conservador aos próprios não o é a olhos alheios e que tudo isso é muito relativo. Dirá o leitor que eram reacionários... Tenho por reacionários os que tomam por modelo um passado muito distante, seja ele antigo ou medieval. Esses que aspiram revogar certar Leis progressistas também aspiram revogar outras leis, que como as trabalhistas, inspiram-se em modelos muito antigos, tenho-os em conta de meio conservadores e meio progressistas - É essa inversão de Garrett ou monstruosidade iniqua do tempo: Conservador nas tais moralidades ou em política e ultra liberal em economia, quando, ao menos entre os Cristãos apostólicos e classicistas se deveria dar o extremo oposto: Conservador ou melhor reacionário em economia e ultra liberal e política ou mesmo em moralidades. Bem se vê que eles adotam o modelo Norte americano ou americanista com sua com sua cultura moralista economicista...

É um conjunto incoerente, amorfo e utópico esse do conservadorismo moral associado ao liberalismo religioso que clama por ilimitação absoluta. Posto que o impulso inicial do progressismo ou da dissolução da sociedade antiga partiu justamente do liberalismo econômico e este da reforma protestante. Temos ai a nova fé e o capitalismo iniciando a demolição do modelo antigo e do antigo regime. Como agora querem os livre examinadores que questionavam a Trindade divina, a Encarnação, a Imortalidade, a presença real, etc pousar de defensores de uma moralidadesinha imutável e absoluta... E mancomunados com o sistema econômico que esfacelou a família, após, com falsas promessas, remove-la do campo. 

E continuam esses conservadores, ignorantes ou hipócritas, a propor esse modelo esdruxulo em que entram uma economia que instila e exige mudanças radicais e uma moralidade tosca de múmias e cadáveres associada a um governo paralitico ou a uma política de aparência, que se confunde com uma polícia destinada a manter as diferenças a golpe de baionetas. Afinal esse Estado só é mínimo mesmo para quem precisa, o pobre, o trabalhador ou o cidadão comum. Depois de ter montado nos ombros do rei e lhe atribuído poderes absolutos CONTRA TODA TRADIÇÃO ANTIGA E CRISTÃ, o poder econômico, consolidado, clama por um Estado de enfeite, que o permita oprimir e dominar 'livremente'.

Tornemos porém a Garrett 

"Não contentes de revolver até os fundamentos a pátria desgraça  com inovações incoerentes, repugnantes umas as outras e sobretudo absurdas, sem consultar nossos usos, nossas práticasm nenhuma razão de conveniência, foram atirar com todo esse montão de absurdos para além mar, onde desatinos se tornaram dobrados e se multiplicaram ao infinito pela variedade de obstáculos, repugnâncias, impraticabilidades...

E o mesmo se há de suceder se loucamente nos pusermos a legislar para aquelas remotas regiões, querendo doutrinariamente forçar localidades, circunstâncias, hábitos, modos de ser que ignoramosm a entrar a martelo dentro dos quadros arbitrários, que nossas teorias cá decretam, como se fossemos nós o Criador que disse: Faça-se! Como se pudéramos nós, mesquinhas criaturas, fazer mais do que reconhecer os fatos como eles são, e modifica-los apenas até onde possam ir..."
Id p 79

Lembram tais palavras as de John Gray na 'Anatomia' por sua elevada sabedoria e alto realismo, de que muitas vezes se esquecem os democratas demasiado abstratos ou formalistas, e sobretudo os jacobinos. E tem certo paladar conservador, posto que não se pode torcer por completo uma estrutura social a golpes de martelo ou altera-la sem levar em conta o Estado precedente.

Quero dizer com isso que o liberalismo político e a democracia, não apenas podem como devem, até onde possível seja, adequar-se as diversas culturas e estruturas sociais. Noutras palavras, que não se pode pegar um modelo francês, inglês ou Norte americano e impo-lo a quaisquer outras sociedades; e a sabedoria popular proclama: Era de outro o paletó do defunto...

Tal como roupas e corpos não é possível tomar o sistema democrático de qualquer país e impo-lo em bloco a um outro...

Serão politicamente liberais ou democráticos quanto a essencialidade, porém a seu modo ou do seu jeito.

E se copiar o modelo francês foi equivocado, imitar o inglês ou Norte americano é desastroso.

Alias o liberalismo político e um laicismo não anti clerical jamais alterariam radicalmente quaisquer culturas - O que não se pode dizer da economia de Mercado ou da mudança religiosa, os quais tendem a altera-las ou melhor a introduzir determinado modelo de cultura e a afirmar - Por afinidade eletiva. - um imperialismo cultural. É exatamente por isso que a democracia meramente formal e sobretudo o protestantismo tendem a promover o liberalismo crasso ou o ethos economicista e a reproduzir a pseudo cultura norte americana noutros espaços.

Outra lição preciosa aqui embutida é que a democracia e liberalismo político equivalem sempre a assunção interna ou a evolução de uma dada Sociedade. Diríamos que o espírito democrático é fruto de uma sociedade madura e cultivada ou que corresponde a um caminho percorrido. Implica admitir que cada grupo ou sociedade deve atingir por si só i é por meio da educação ou da cultura esse estado de consciência. Enfim que a vida democrática é resultado de um processo interno. 

O que nos conduz a lição final - Que a democracia, supondo um espírito, jamais pode ser imposta externamente a qualquer sociedade. Que o liberalismo não pode ser dado ou comunicado por meio de uma guerra ou invasão. Que as instituições livres não podem ser levadas ou transferidas, e que o jacobinismo - Francês ou Norte americano - estão redondamente equivocados > A democracia jamais procede de fora. A ideia pode até vir e vem, de fora, porém o sentido de excelência ou de necessidade e enfim a aspiração, deve sempre vir de dentro. Um povo qualquer deve desejar a liberdade e desejar inclusive morrer por ela...

Foi semelhante desejo que fez os atenienses resistirem aos persas e vencerem em Maratona e Salamina.

Recorro enfim aos exemplos arrolados por Gray - Os diversos grupos étnicos e culturas africanas que se atacaram mutuamente e mataram uns aos outros após a supressão do domínio colonialista (Tutsis e Hutus.) ou ainda as seitas religiosas muçulmanas... Com o objetivo de certificar que a autonomia democrática não pode ser conferida por decreto a todas as sociedades humanas sem que estejam a altura desse ideal. Do contrário poderia ser como uma faca entregue a uma criança. Melhor seria para certas culturas de certos locais que mantivessem seus próprios regimes.

O revolucionarismo jacobino N Americano é tão patético quanto os modelos comunista e anarquista e não nos deixemos enganar, tudo quanto os norte americanos aspiram é levar sua cultura 'in totum' a outros lugares, neste sentido não são melhores que os muçulmanos com seu imperialismo árabe. É tudo o imperialismo ou farinha do mesmo saco. A nós, a parte de um liberalismo político suficiente ou de uma democracia básica, convém permanecer leais a nossa cultura - No caso latina, ibérica ou brasileira e diante disso repudiar o liberalismo político ou o capitalismo como elemento exógeno ou importado.

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