sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Breve ensaio sobre os escombros...

Certa vez Nietzsche declarou que a cultura de seu tempo assemelhava-se a um grande campo coberto por ruínas... Já aludi a esta visão feérica diversas vezes.

Era menino e jamais me esqueci da ilustração que mostrava Goethe chorando diante das ruínas do fórum romano.

Goethe era Goethe, tendo como nós, uma das faces voltadas para o passado longevo de glória. Nietzsche possuído pelo espírito de Dionísio mais parecia o profeta judeu que aspirava tudo arrancar pela raiz para depois replantar. São homens que empunham o camartelo e estilhaçam o belo mármore sem derramar uma lágrima sequer...

Tal nossa civilização - Campo em ruínas ou cemitério de ideologias?

Desde que o Catolicismo foi imobilizado e lançado por terra após ter imperado por mais de mil anos é possível parafrasear os Atos dos apóstolos e dizer a respeito de cada um dos sistemas que o sucedeu: Ai onde caiu teu esposo a pouco hás de cair tu também, e os coveiros já estão a porta.

Efêmero o triunfo do protestantismo com seu furor bíblico - ao menos entre as pessoas instruídas e sobretudo no plano social, esfera em que jamais gozou de reputação semelhante a do sistema que cobiçou suplantar e substituiu.

Substituiu-o efetivamente a ordem naturalista do liberalismo econômico ou do capitalismo, a qual o protestantismo tem servido como um lacaio.

As contradições produzidas pelo liberalismo econômico, como registrou Marx,  não tardaram a suscitar uma oposição socialista e por fim o advento do comunismo. E se o liberalismo econômico havia triunfado na Inglaterra em 1643, seu antipoda triunfou na Rússia em 1917, e o triunfo do Comunismo na Rússia levou consigo metade do mundo...

Entrementes um liberalismo político estrutural ou formal triunfou num cenário, igualmente maior, a França, um século e meio depois. E as ruínas do antigo regime vieram a juntar-se com as ruínas do protestantismo...

Em 1917 as ruínas do protestantismo, do antigo regine e do capitalismo atulhavam a civilização. Outros colossos haviam sido erguidos sobre elas - e ao lado do edifício sólido da igreja antiga - assim o Comunismo, a democracia formal e o Positivismo (Sucessor da fé e da Filosofia) enquanto outros como o fascismo e o nazismo estavam a ser edificados, sendo promissora a arquitetura do século XX...

E no entanto, abalo após abalo, todas estas construções portentosas vieram abaixo... E não sobrou pedra sobre pedra.

A abominação nazista veio abaixo em 1945 e o fascismo acompanhou-a. O positivismo, que como serei augurava as novas gerações um paraíso sobre a terra, perdeu todo encanto após duas grandes guerras. O Comunismo resistiu por cerca de setenta anos, esboroando-se em 1990. O desabamento mais fragoso no entanto deu-se em 1962 - a partir do Vaticano II - com a queda da igreja romana vitimada pelo modernismo e até certo ponto protestantizada. E tudo quanto restou de grandioso foi a crença infantil e leviana nessa democracia formal ou estrutural, na qual não há espírito - afinal é cria do positivismo e não dos gregos ilustres. Havendo, inclusive quem apresente-a como algo acabo e incapaz de ser aperfeiçoado ou como o fim da História, assim ao Capitalismo - Pasmem! Uma coisa é admitir que seja ela, o que de melhor temos hoje (refiro-me a democracia apenas de modo algum ao capitalismo) e outra que não possa ou deva ser aprimorada.

Claro que a teoria segundo a qual a democracia se sustentará e manterá tal e qual é, com suas limitações, vícios e defeitos, demanda bastante fé. Eu não tenho fé. Quantos já não escreveram sobre os problemas desta democracia? Revel, Sartori, Bobbio, Ameal, Maurras, Huntington, Lucáks, Poulantzas, Gramsci, Cahn, Lindsay, Moss, Tocqueville, etc, etc, etc Há portanto chances concretas de que mais e mais ruínas acumulem-se no decorrer deste século... Do capitalismo, que parece recuperar-se, nada devemos esperar, exceto que esgote todos os recursos disponíveis e conduza a Sociedade a destruição, caso não venha a entrar em colapso.

O irracionalismo reinante todavia, serve-lhe de couraça impenetrável. Como as fontes do Capitalismo ou sua causa eficiente, encontra-se dentro do próprio ser humano, na instância da vontade, mesmo em seus dias de glória, a razão teria bastante trabalho no sentido de 'conte-lo'. Hoje em tempos de irracionalismo explicito... Assim suas contradições internas, fazem-no entrar em colapso ou levam nossa espécie a extinção, para a sorte daquelas espécies que não chegamos a extinguir e que serão contempladas com uma nova chance.

Caso o edifício da democracia formal venha abaixo antes de converter-se numa democracia popular, real ou direta as perspectivas não são nada boas, seja ela substituída por novos totalitarismos - quiçá religiosos (Teocracia) - ou pelo anarco individualismo compreendido como dissolução do que chamamos sociedade, aqui algo que sequer podemos conceber, mas a respeito do que Hobbes nos faz vislumbrar...

Mesmo esta democracia precária, e que precisa ser ultrapassada, tem nos preservado desses dois extremismos perigosos representados pela tirania, o despotismo ou a ditadura a um lado e a anomia a outro.

A democracia para adquirir vitalidade e aprimorar-se deve deixar de ser simples forma para integrar-se como espírito ou mentalidade, a cultura. A liberdade deve converter-se em um valor significativo, em nome do qual as pessoa aceitem e desejam morrer se for preciso.

Já as relações humanas, dentre elas a produção de bens ou seja o setor da economia, devem ajustar-se, acima de tudo as exigências da justiça. Não é o Mercado, mas a necessidade humana que deve determinar o salário. Impedido a afirmação da miśeria no bojo da Sociedade. A economia deve assumir uma perspectiva Ética. Não há outro caminho possível além de liberdade no plano da política e justiça no plano da economia.

Há então uma esperança?

Sim, certamente há. Mas também há um empecilho poderoso.

Pois se o positivismo desabou como sistema fechado permanece vivo e quiçá pujante no setor da cultura.

Mas qual o problema do positivismo? Perguntará o leitor.

Para sermos sinceros diremos que este modelo, pautado nas ciências exatas e biológicas, tudo envenenou e desvirtuou ao inserir-se nos domínios das ciências humanas, questão examinada compropriedade de Dilthey a Poincaré ao cabo de meio século. Em Psicologia, deu origem a essa corrente espúria chamada Behaviorismo - Uma análise superficial do Behaviorismo encontra-se no livro de Marilynne Robinson 'Além da razão' ed Nova Fronteira 2011 capítulo I pg 17 - e em Sociologia a diversos sistemas, todos materialistas e mecanicistas.

Alegadamente é o positivismo, enquanto filho do criticismo kantiano e do ceticismo Humeano, uma forma de agnosticismo. O que deveria força-lo ao silêncio, como queriam os ingleses Huxley, Mill e Spencer. A bem da verdade no entanto, foi o positivismo, sob a forma cientificista, justificando cada vez mais abertamente o materialismo, até vende-lo como científico, enquanto a ciência estritamente empírica é por assim dizer agnóstica e silenciosa quanto a tudo quanto não seja material. É discurso que não se pode fazer - a partir da ciência - e não um discurso negativo, o qual sempre será metafísico. Acontece que nem todos os cientistas são versados em Filosofia ou Epistemologia...

Daí ao cabo do século XX o positivismo, sob a forma acintosa do cientificismo, tornar-se porta voz do materialismo. Nada contra os materialistas que apresentam-se como metafísicos, não é o caso dos positivistas... Aqui há quem pretenda inclusive ser cético (rsrsrs) e ateu, cético e materialista, cético e positivista... Dando razão a Hume e Kant.

No plano da cultura o que foi dito a respeito do ceticismo por Victor Brochard em sua extensa monografia sobre os céticos gregos foi reproduzido em gênero, número e grau pelo insuspeito G Sorel sobre o materialismo, ideologia 'de crise' que ele vinculou ao fim do mundo antigo... Antes do mundo antigo ter se lançado aos braços do mitracismo, do gnosticismo e do Cristianismo havia se lançado aos braços do ceticismo e do materialismo. Não passou da razão a fé ou ao fanatismo, passou do irracionalismo ao misticismo (no qual o próprio neo platonismo se havia transformado) e as crenças; sendo recuperado para a razão ou a teologia, pelo Catolicismo num processo que culminou com a escolástica.

Dir-se ia que este homem antigo fartou-se da razão ou mais propriamente que condições sociais adversas fizeram-nos desconfiar da razão e nega-la. Assim o homem de hoje é precipitado pela crise que o envolve nos braços de ideologias negativas que reforçam a crise. O homem angustiado da Sociedade do capital chegou a duvidar seriamente de sua capacidade. Bastou a falsa religião apresenta-lo como culpado e incapaz para que ele acredita-se e nega-se a si mesmo. Por isso a própria sociedade enquanto convívio dos homens não encontra regeneração... Porque seus membros chafurdam no pântano do irracionalismo.

Mesmo antes de ter tirado sua máscara e assumido o viez materialista que viria a caracteriza-lo posteriormente, o positivismo, desde o tempo de Litreé, tendo declarado guerra a metafísica ousou repudiar a validade da Ética. Já Brochard, em sua já citada obra, havia registrado que os antigos céticos costumavam ficar exasperados quando seus contraditores embrenhavam-se pelo caminho da ética, uma vez que nada tinham a oferecer e eram levados a admitir que absolutamente tudo era permitido... O que evidentemente assombrava seus contraditores, embora de modo algum assombre o homem leviano do século XXI. Mason acaba de morrer e Mason urdiu o assassinato de Sharon Tate, seu filhinho e seus hospedes, alegando que 'tudo era permitido' uma vez que ele e seus seguidores não concordavam que assassinar, roubar, etc era errado... E como nada há além ou acima do individuo... E como não há ética essencial e objetiva, temos de concordar com Mason.

O que nos faz julgar e condenar com propriedade a um Hitler ou a um Mason é a lei natural, essencial e comum que transcende a cada individuo e a todos eles. Eliminado o direito natural, como querem Kelsen e Ross apenas o poder político sobrepoem-se a pessoa. Aparentemente semelhante doutrina não parece apenas inofensiva mas até sensata... E no entanto quantos não foram os crimes cometidos pelas sociedades, pelos estados e organizações políticas ao cabo da história - A escravidão negra nos EUA, o Apartheid na África do Sul, os Campos de concentração nazistas na Alemanha, etc Daí Thoureau ter elaborado a doutrina da desobediência civil embasada na consciência pessoal, a qual é tão digna (senão) quanto o poder político o é. Assim se Ross e Kelsen personificam Creonte, Antigona é feita valer pelo autor de Walden. Importa que hajam valores objetivos e essenciais acima de Antígona, Creonte, Ross, Kelsen, Hitler ou Mason... A que possam reportar-se pessoas e sociedades.

O positivismo no entanto não o pode admitir...

Justiça e liberdade não podem ser experimentadas, vistas, pesadas, medidas, contadas, etc Existem apenas nos diferentes individuos, mas de forma diferente. E o que é liberdade para um já não o é para outro... Nada de objetivo e externo aqui. Caso a justiça existe externamente e tenha uma forma comum, terá de existir e de subsistir imaterialmente... O que o positivismo não pode admitir. Todo essencialismo ético, todo universo socrático/platônico é fundamentalmente anti positivista. É metafisico duma metafisica imaterialista ou espiritualista sem a qual a solução ética formulada pelo filho de Fenarete vem abaixo e desabada fragosamente.

Lamento te-lo de repetir pela milésima vez neste tempo em que fala tanto e tão levianamente sobre ética. Afinal o grande mérito do pós modernismo anti positivista foi reabilitar o tema da ética, sem no entanto saber ou poder soluciona-lo pela via do irracionalismo. Seja como for do positivismo jamais partiu qualquer sistema de ética, ele jamais ocupou-se da ética mesmo quanto não chegou a nega-la honestamente com Litreé... o máximo a que seus profitentes chegaram foi a identificar a ética ou os valores com uma dada cultura humana, o que nos leva, como vimos a instância da sociedade ou do estado, com cujo padrão deveríamos conformar-nos, mantendo os liames sociais. Durkheim fornece um suporte perfeito para Kelsen e este um suporte perfeito para a estatolatria e conformismo típicos do ceticismo enquanto negação da metafisica e da idealidade. Foi assim com Pirro na Grécia antiga, ninguém mais conformista e conservador do que ele, dirá o citado Brochard... e não poderia ter sido diferente, pois como assevera Recaséns Sichens, não há crítica ou resistência, ou oposição a um dado concreto sem que haja uma instancia ideal. O positivismo nega doentiamente essa instância ideal e portanto, na mesma medida, faz com que nos submetamos docilmente a um veredito social que nem sempre é certo.

Remova a ética e terá o Nazismo, a escravidão, a tortura, o machismo... Irrelevante condenar tais monstruosidades em nome do homem ou do individuo porque alguém mais atilado, como um Mason, percebendo o logro, sempre poderá discordar. É necessário condenar o machismo, o racismo, o odinismo, o adultismo, o especismo, etc em nome de um princípio superior a todos. É necessário fulminar tais vícios com uma condenação irretorquível. A qual independa da anuência ou da vontade dos indivíduos. Em nome de uma lei a que eles não poderão furtar-se porquanto universal e absoluta. O materialismo jamais ultrapassara o utilitarismo... e este o individualismo e isto por mais que J S Mill tenha se esforçado por inserir em seu sistema um elemento tomado ao catecismo ou ao Evangelho. A solidariedade ou empatia empiricamente falando nada é. Por via do materialismo somos seres separados uns dos outros e não podemos jamais fugir ao individualismo com todas as suas funestas decorrências. Mas temos os mesmos corpos! Não, temos corpos semelhantes quanto a constituição, mas diversos quanto a extensão e por isso a dor sentida por não não se propaga ao corpo do outro... Mas eu talvez venha a passar pela mesma situação... Isto continua sendo suposição, a qual não me obriga a coisa alguma. Todo e qualquer sistema de ética que parta do materialismo jamais conseguirá opor-se com sucesso ao individualismo. Serão individuos buscando suas vantagens, bem a gosto do darwnismo social...

E se tais individuos tiverem de matar, de roubar, de mentir, de trair, etc para obterem os resultados a que aspiram, para se realizarem ou para serem felizes? Dirás que o direito deles termina onde começa o do outro... que devem se colocar no lugar do outro... Que é errado... Mas onde e por que modo são tais palavras comprovadas pela experiência sensível ou pela empíria? E por que não poderá o indivíduo pensar diferente de ti ou discordar? Acaso não é ele livre??? Teme ao menos ser apanhado pela justiça, teme ser descoberto, teme ser preso, teme ser punido... O conselho até seria bom caso não deixa-se implícito que um crime não descoberto ou punido nada significa. Destarte todo aquele que acredita ser espero a ponto de cometer o crime perfeito e escapar a justiça humana, seria tentado a faze-lo. E de fato há certo número de crimes que jamais foram desvendados ou cujos criminosos escaparam a mão da justiça... Para não poucas pessoas impunidade é ou seria equivalente de permissão, e a doutrina utilitarista e individualista um fiasco completo.

Hume merece certamente ser aplaudido por sua honestidade quando partindo de seu ceticismo inveterado teve de concluir que o assassinato não constitui um mal em si mesmo e que a única coisa que o transforma em crime é a lei baixada pela sociedade. Portanto não havendo punição ou lei externa não haveria crime. Tortura e estupro tampouco seriam males condenáveis em si mesmos, exceto se condenados pela sociedade. Agora imaginem uma Sociedade que aprovasse a tortura, como a Comunista, a Fascista, a Nazista - ou uma outra, como a islâmica, onde estupro de vulnerável ou de infiel fosse autorizado... Eis para onde nos leva Hume. Agora reflitamos sobre o que sucederia caso as pessoas, em especial as massas o ouvissem e o levassem a sério. Imagine uma Sociedade em que o sistema de Mill fosse adotado sem os atavios tomados ao Cristianismo com sua ética revelada... Sim, pois o outro nome do utilitarismo individualista é darwinismo social; amiguinho Mill e amiguinho Spencer estão de mãos dadas... E nessa sociedade regida por princípios egoístas compaixão, amor, justiça, etc não apenas não fazem sentido como representam desvantagens em conflito com a experiência biológica.

Observem mais uma vez este trágico quadro - Utilitarismo, Individualismo e Darwinismo social... E reflitam sobre de que maneira poderiam tais doutrinas servir de anteparo as culturas de morte do Anarco individualismo, do Fascismo, do Nazismo e do Comunismo... Não poderiam, mais fácil que sirvam de introdução a tais monstruosidades. Insistiam no relativismo subjetivista de vocês... Até que os nazistas, fascistas e comunistas gritem em alto e bom som que tem o direito de ter suas opiniões, de pensar diferentemente e de não querer respeitar o homem...

O positivismo, o cientificismo, o ceticismo, o materialismo e sobretudo o ateísmo jamais poderão servir de fundamento a qualquer sistema de ética capaz de proteger, valorizar e promover o ser humano face aos clamores das culturas de morte. Afinal sempre serão sistemas estruturais a que sempre se poderá escapar. Não cogitam em liberdade ou em justiça e por isso jamais serão capazes de inserir vida em nossa democracia semi morta ou de reformular as instituições econômicas produzindo uma sociedade mais solidária e fraterna. Não devemos esperar qualquer redenção do positivismo ou de seus tentáculos. Assim enquanto mais e mais escombros vão caindo sobre nossas cabeças, e diante deste cenário feérico de um imenso campo coberto por ruínas monumentais, só nos resta ir bater a outras portas...

Seremos capazes de reconstruir alguma coisa??? Não sei, não sei, não sei; mas certamente devemos tentar...

Poderemos aproveitar algum material?

Mármores e pórfiros sempre podem ser reaproveitados com sucesso...

Reciclagem é sinal de inteligência...

Algo há que possa ser recuperado?

Veremos, veremos...


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