quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Uma velha árvore... - Considerações sobre a vida, a flora, a velhice e a morte...

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Cerca de uma semana meu irmão e eu havíamos resolvido ir até a Livraria Loyola, que fica ao lado da Basílica de S Antonio do Embaré. E como a Livraria estivesse fechada para balanço após ter entrado na Basílica - uma das joias arquitetônicas da cidade de Santos - e feito ligeira prece, optamos, ambos os dois, por ir até a Livraria Martins, que fica na Avenida Dna Ana Costa.

Anoitecia, e como o tempo estivesse bom, decidimos ir pela Epitácio Pessoa. Afinal a cada véspera de ano bom a orla da praia fica literalmente tomada por uma multidão, em sua maioria formada por turistas que descem a serra para passar o 'Reveillon' junto ao mar... Então optamos pela Epitácio, embora esta também regurgitasse de gente...

Assim atravessamos o Canal quatro - Pois os santistas costumam localizar-se pelo número dos canais que cortam sua bela metrópole - e atingimos a Conselheiro Nébias, uma das artérias mais importantes da cidade e primeira via de comunicação retilínea entre o Centro velho e a praia... Tal e qual a Paulista, esta via, margeada, ao dealbar do século passado, por casarões monumentais, achasse agora quase que totalmente ocupada por descomunais arranha céus... Pois bem, corta-mo-la e atingimos governador Pedro de Toledo enquanto discutíamos empolgada e distraidamente sobre um de nossos temas preferidos, a Filosofia antiga.

Foi quando, pouco antes de chegarmos a R da Paz, meu irmão interrompeu a conversa e murmurou alguma coisa sobre uma árvore ter tido seu tronco quase que inteiramente recoberto por um tecido cuja cor não lhe agradará. Olhei e imaginei tratar-se de remanescente da decoração natalina. De minha parte não só achei o pano bonito como até acabei tocando-o para sentir a textura... muito macia por sinal. Sem mais cerimônia fui dando volta a árvore, apenas para constatar que - ao menos a primeira vista - tratava-se de um exemplar morto, sem folhas e completamente coberto por epífitas - Sobressaindo-se a Erva Silvina ou Cipó cabeludo (Polypodium vaccinifolium) ingrediente medicinal que faz parte do tradicional fitoterápico Fimatosan - duma espécie bastante comum em nossas calçadas mas cuja designação, seja científica ou popular, eu ignorava supinamente. 

Portanto, dando a velha árvore por finada, já me ia retirando...

Foi então que percebi a existência de uma discreta placa de madeira pendurada num de seus galhos. Sobre a plaquinha havia uma inscrição feita com caneta pincel preta, a qual dizia mais ou menos assim: Após ter completado meu ciclo despeço-me de todos vocês... Lemos, relemos e por mais uma vez tornamos a ler a curiosa inscrição tentando penetrar seu significado. E a esse tempo éramos já quatro cidadãos, pois uma dupla de transeuntes que por ali passava e residia nas proximidades também parou junto a nós para ler e refletir sobre curiosa inscrição... Foi quando um dos senhores em questão - confesso-me meio míope - dando com alguns tufos de folhas na ponta dos galhos superiores da até então defunta árvore, exclamou entusiasmado:

--- Há brotos nela!

E de fato haviam brotos, misturados com a Erva Silvina, no alto de praticamente todos os galhos!

Como Lázaro saído da tumba, a velha árvore tornará ao convívio dos vivos...

O que nos levou a questionar - Neste caso por que corta-la???

Tal a pergunta que fizemos uns aos outros e que nos pusemos a discutir enquanto o sol se punha.

Até então passou-me desapercebido o fato de que estávamos a discutir e a praguejar diante de uma Loja bastante conhecida na região.

E enquanto discutíamos à moda italiana, ou seja, em voz alta e gesticulando bastante, abriu-se a porta da Loja vindo a sair por ela uma jovem simpática e educada chamada Kamilla. Kamilla Santana, filha da proprietária.

É o povo santista polido e afável por tradição... E por isso ao invés de ralhar conosco e de expulsarmos da calçada a moça em questão, confidenciou-nos detalhadamente o caso -

Trata-se duma Saboeira ou Saboneteira - Sapindus Saponária - idosa, que teima em rebrotar. Estávamos portanto diante da árvore cujos frutos contém saponina e com os quais se pode fabricar detergente, shampoo e sabão, medicinal alias (Um bactericida e fungicida natural) além de possuir outras tantas propriedades curativas. E não é só isso dentro do frutinho, que cuja entre casca serve como uma espécie de bucha ainda há uma drupa bastante usada pelos artesãos, que com elas fabricam pulseiras, colares, terços, etc

Tal o veredito do agrônomo que enviado pela prefeitura municipal decretou sua morte... (Se bem que ele limitou-se a identifica-la, ficando o resto da informações por minha conta rsrsrs)

Já sabemos, a árvore não é nativa desta região. Eis o que dizem. E a proprietária, Kamilla, terá de adquirir e plantar outros nove exemplares da mesma espécie, o que de boa vontade propôs-se a fazer. Tal o ponto de vista da Prefeitura, sancionado pela objetividade... Mas não é esta a questão, nem para a simpática jovem, nem para nós.

Kamilla fez tudo quanto era possível para salvar a velha árvore, mas sua boa vontade chocou-se com dispositivos e mais dispositivos legais a respeito de árvores e calçadas... Talvez algum deles até diga respeito a segurança dos pedestres, mas nem todos creio eu... O fato é que não se pode rebaixar a guia aqui, nem por a velha árvore mais acolá, etc Enfim por questão de matemática traduzida em metros ou centímetros a velha árvore que renasce deverá ser cortada ou melhor executada, e sumariamente, isto é, sem direito a defesa... Tal a lei dos homens, objetiva, prática e inexorável.

Quanto a mexer na calçada ou fazer a interferência em questão, é algo necessário para facilitar o acesso e a permanência dos clientes na Loja. Proprietário algum na região teria coberto uma velha árvore com tecido e pendurado uma placa em seus galhos caso não nutrisse algum sentimento para com ela... Todavia uma Loja também precisa preocupar-se com o bem estar de seus clientes, e vive de lucro. Apesar disto Kamilla aspirava salvar a velha árvore. Esbarrou no entanto com os códigos e leis da Prefeitura, para a qual uma árvore é apenas uma árvore e nada mais...

Ademais está velha. Corte-mo-la e plantemos nove árvores novas ou nove mudinhas em seu lugar.

E no entanto apesar de ter cumprido parte de seu ciclo ela vive e rebrota para o viço. E os homens arbitrariamente, negam-lhe o direito de existir e de viver. Porque é apenas um animal, dizem uns em semelhantes casos... Porque é apenas uma árvore velha, dizem outros... Porque sequer tem alma completarão alguns... Eis seu crime - envelhecer e não ter uma suposta alma imortal - em função do qual lhe é negado o direito de morrer em paz, após ter purificado o ar que respiramos, embalado ninhos de passarinhos e deitado milhares ou milhões de cachos floridos... Enfim é apenas mais um pé de saboeiro, espécie vulgar entre nós, e por isso deve morrer.

Mas aquela árvore, como outras tantas, esta ali desde que eu era menino, há trinta ou quarenta anos... Logo como os ingazeiros do macuco fazem parte da paisagem, da cultura e do ambiente... Servem de referência aos moradores, reportam memórias... Afinal quantos namorados flertaram sob as copas de tais árvores? Quantos não gravaram seus nomes sobre aquele nodoso tronco buscando perpetua-los? Podemos ainda perguntar-nos a respeito de quem a escolheu, de quem a plantou, de quem amparou seus ramos enquanto cresciam... Sobre quanto tempo está ali, testemunha muda da vida e de suas transformações.

Mas se acaso a velha árvore vier a morrer não há risco de cair sobre alguém e até mesmo de causar algum acidente? Como se a Prefeitura não tivesse recursos para saber se uma árvore morreu ou para remove-la após sua morte. A bem da verdade não tratamos de modo diverso nossos idosos e tampouco as pessoas comuns, a que chamamos de vulgares... Apesar de que em tudo a espírito e vida, nas pessoas e nas árvores velhas e comuns.

Não é possível deixar a velha árvore morrer nas proximidades em que cresceu? 

Nada mais simples, afinal a Prefeitura - que tem um imenso jardim na orla da Praia (Pomposamente registrado no Livro dos Recordes) - bem pode mandar cortar seus galhos (podar) e transplanta-la a Orla, como tem feito com as Palmeiras coletadas em diversos quintais. Ousarão diclarar que palmeiras são belas e saboneteiras velhas não??? Afinal nem todos os exemplares de Palmeiras replantados pertencem a nossa região... Será a saboneteira feia??? E por isso, baseados em critérios estéticos não a transplantam??? Aplique-mos tal critério aos humanos e teremos chegado ao fim da picada. Afinal é a vida bem e direito em si mesmo, para além de quaisquer critérios estéticos.

Há custos...

Então cortam as árvores velhas por considerações de ordem financeira... E depois ainda reclamam quando nossos jovens apaixonados pela vida, pela fauna, pela flora, etc Tornam-se comunistas! Então cessem de antepor condições econômicas a vida! Cessem de tudo mensurar com base no lucro ou no dinheiro... E permitam a uma árvore idosa, que ora rebrota para o viço, morrer em paz ou cumprir seu ciclo naturalmente. Permitam que mais uma vez abrigue ninhos e ouça o trinar dos passarinhos! Deem mais uma chance ou oportunidade ao velho saboeiro!

Presenteiem a alma benfazeja e sensível do povo santista - que é mestra em matéria de caridade - fazendo transplantar a velha árvore para a orla da Praia ou para uma praça qualquer, pois não é algo difícil de ser executado e tampouco vultoso em termos financeiros. Um pouco de flexibilidade e boa vontade sempre faz bem ao coração e a alma. Homenageiem ao Patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos primeiros cidadãos brasileiros a preocupar-se com o desmatamento e o replantio, salvando o velho saboeiro da Pedro de Toledo com a Rua da Paz.

E vocês santistas, povo nobre e virtuoso, que fazem questão de pendurar orquídeas nos troncos das árvores que margeiam vossas vias públicas, jamais digam que nos esbatemos por pouco ou por uma mera árvore velha, antes somai esforços conosco em torno de tão boa causa!


Profo Domingos P Braz, cidadão santista residente em São Vicente.

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