terça-feira, 12 de junho de 2018
Pitadas de literatura e sociologia - Bancas de jornal, gibis, internet e as três 'Eras' de H P Lovecraft (Diálogos com um Livreiro)
Mais no passado não muito distante, mas em certa medida mesmo ainda hoje, os sebos ou casas onde se compra e vende livros usados (antigos) sempre foram um local bastante favorável a troca de ideias, a tertúlia amistosa, ao diálogo... enfim um ponto de encontro entre a intelectualidade. Assim na Briguet ao tempo de Rui Barbosa... Assim no Sebo de Olyntho de Moura, onde meu saudoso mestre Jaime de Mesquita Caldas, dizia ter tido acesso ao convívio de Yan de Almeida Prado, Viana Moog, Alfonso de Taunay, Tito Lívio Ferreira e outros notáveis memoristas, historiadores e literatos...
Quando eu era rapazote, no final dos anos 80, e surrupiava uns cobre do papai, logo ia correndo a primeira e mais farta banca sebo de Santos, a Banca do Habib, situada na Praça dos Andradas e onde se comercializada calhamaços do século XIX, verdadeiras raridades, a granel... E por lá garimpando achavamos a profa Maria Aparecida Franco Pereira, a profa Conceição das Neves Gmeiner, Sá Porto, Laudo e muitos outros 'monstros sagrados' cujos nomes ignorávamos. O Brizolinha, recentemente falecido, tinha sua Banca, pequenina, na primeira esquina da Itororó, que sai nos fundos do convento do Carmo. O sebo e livraria Antiquária, do desditoso Ivo, já era antigo e o Ivo muitas vezes recusava-se a vender o que julgava ser raridade rsrsrsrsrs. Dizia: Não, não esta a venda. E não vendia por preço algum. Esperávamos o dia em que ele saía para pagar as contas e deixava seu velho Pai, o sr Joaquim (Alias bem mais educado do que ele) no balcão, tomávamos o mesmo livro (as vezes raro) e pagávamos uma ninharia!
As Bibliotecas públicas estavam apinhadas de livros raríssimos e valiosos. A da ASL, a da Humanitária, a do Centro Português, a do Centro Espanhol, a da Societá Italiana (alias comprada pelo Ivo), etc A fama de algumas Bibliotecas particulares como as de Edgard de Cerqueira Falcão, Sá Porto, seo Frazão, etc corria de boca em boca... Outras tantas eram despejadas mensalmente nos sebos, e garimpadas pela categoria professoral. E entre um livro e outro trocavam-se ideias e telefones, estabelecia-se diálogos, discutia-se e até 'brigava-se'...
Mas não eram só os Sebos não. Recuando aos anos 80 i é ao começo dos anos 80 ou mesmo final dos 70, quando eu era um menino e até onde chegam minhas primeiras memórias as Bancas de Jornal constituiam farto arsenal de cultura face ao que hoje, praticamente nada são. Meu falecido pai, Deus o tenha, adquiria jornais portugueses aqui em S Vicente, na tradicional Banca do Walter e lembro-me de que em 82/83 ainda circulavam jornais japoneses e árabes por estas regiões (recordo-me perfeitamente dos sinais estranhos) além de jornais ingleses ou norte americanos, portugueses, franceses, espanhóis e italianos; era possível encontrar cada um deles nas principais bancas do centro de Santos. Ora eu mesmo nasci ou melhor fui criado, dentro duma dessas enormes Bancas de que meu pai era proprietário pelos idos de 1975/76. Meu tio Domingos era proprietário de outra imensa Banca na Cons Nébias... e os jornaleiros abasteciam-se nos depósitos da Magalhaẽs, ao lado do antigo Presídio da R S Francisco de Paula ou da Castellar, nas proximidades do Fórum; o quanto não era vendido nas Bancas ou as sobras eram levadas para tais depósitos e vendidas a preços econômicos... O que sobrava era quase sempre o melhor... Podia-se fazer grandes compras, e lá estavam os garimpeiros e toda gente que amava gibis e revistas. Sim senhor, aquilo era um mundo.
Alias cada banda Era um mundo na cultura não digital dos anos 80, a derradeira década antes da Net! Haviam gibis e revistas de todo tipo. Recordo especialmente do Zagor, do Fantasma e do Tex que eu a princípio folheava, depois lia e enfim devorava com fervor... Sem falar nas revistas 'preto e branco' eróticas ou de terror ilustradas pelo divino Rodolfo Zalla e Eugênio Colonnese, mestres insuperáveis... Eu não podia nem pensar em folhear as revistas eróticas uma vez que minha mãe era protestante rigorosa, e eu... pobre de mim, tinha de segui-la e temia as 'terríveis chamas do inferno' rsrsrsrs Assim andava a carruagem. Minha mãe não queria mas meu pai não apenas consentia, mas estimulava-me a ler revistinhas de horror como Cripta e Calafrio, cujos exemplares ainda hoje tenho e coleciono. Naquele tempo eu sequer sabia ou imaginava que as ilustrações dos livros de ciência que pegara no Ferro Velho (Minha mãe não permitia que comprasse ou recebesse livros de presente de meu pai pois acreditavam que o excesso de estudos me deixaria louco - acho que ela acertou rsrsrs) e de que tanto gostava haviam sido feitas pelo Zalla, bem como as do livro de História do Julierme, meu preferido e cujas tirinhas sobre sumérios, egípcios, gregos e romanos levavam-me ao delírio.
Apesar de meus medos e limitações podia perceber facilmente a extensão em que todo aquele material circulava. Sem contar com os livrinhos de faroeste, os livrinhos Corin Tellado, os romances da Barbara Cartland, alguns dos quais li, etc Havia um imenso conteúdo etno antropológico em algumas daqueles publicações como Zagor, Fantasma, Calafrio, Barbara Cartland, etc Tudo aquilo fazia reportar a Salgari, Maine Reid, C S Foerester, Karl May, Hall Caine e em última instância a Júlio Verne, cujas 'estórias' eram reproduzidas em não poucos gibizinhos. Haviam encantadores livrinhos para crianças com estórias de Êsopo, La Fontaine, Ch Perrault, Grimm, Verne, etc A Bíblia ilustrada da Abril, a Iliada, a Odisséia, a Távola redonda, Êsopo, La Fontaine, etc
Lembro-me de que os mais idosos não cessavam de falar numa tal EBAL... cujas publicações enfim vim a conhecer 'de visu' - Série Sagrada, Histórias maravilhosas e uma infinidade de super heróis como Homem aranha, Super homem, Homem de ferro, Namor, o príncipe submarino, Flash Gordon, etc Eram tantas publicações que ficava dificil escolher o que ler e podia-se ficar lendo pelo resto do dia que não esgotava o stock daquelas Bancas. E em cada esquina havia uma delas...
Hoje ao sair de uma repartição pública passei no Sebo do amigo Marcos, onde por vezes é possível achar alguns amigos, como o Jorge Alves e formar uma tertúlia... Meu irmão, até pouco tempo, ia semanalmente ao Sebo do falecido Brizolinha para prosear. Conheci algumas pessoas fascinantes ali mas em geral frequentava os velhos Sebos do Centro velho de Santos, cujo número vai se reduzindo dia após dia ou ano após ano. Já não temos o grande Sebo do Habib, mas temos as banquinhas do Marcelo e do Marcos Noriega, o de as vezes 'faço ponto' exercitando a verborragia ou o diletantismo. Então como disse, dei uma passadinha por lá. Sempre se aprende com a maior parte dos sebistas. Brizolinha era um erudito e o Marcos Noriega pessoa sumamente bem informada e inteligente... O Jorge do Sebo S Jorge ou da Dna Cecília é meio rabugento, mas homem de farta ou vasta leitura.
Conversamos justamente sobre o quanto acima escrevi - Os antigos Sebos, Bancas, Bibliotecas... anos 50... anos 80 e ficamos a pensar se a cultura entrou em declínio após os anos 80 ou se passamos por uma crise intelectual. Refletimos juntos e chegamos a uma conclusão paradoxal. A Internet de algum modo, substituiu tudo isto como a imprensa, pelos idos de 1470, substituíra grande parte dos manuscritos. Não é que a cultura acabou, minguou ou entrou em crise porque as Bancas de Jornal se acabaram ou empobreceram. A cultura assumiu outra forma, forma digital. Alias a maior parte desse material antigo mais algum material novo não só é produzido ou reproduzido nos meios virtuais como alcança uma circulação bem mais ampla. É ilusório imaginar que a cultura mingou com relação ao último meio século, apenas deixou de ser impressa no papel e de circular materialmente. Mas transplantou-se para as redes de computadores e acha-se presente nelas. A cultura hoje é digital e o acesso certamente mais democrático e fácil, ao menos para as novas gerações.
Claro que as gerações anteriores a Net e habituadas com aquele universo de papel, tão colorido, belo e sobretudo físico ou material sentiram-se deslocadas ou frustradas, pois assimilaram ou assumiram o hábito de manipular a cultura com as mãos ou de folhear - Hoje não se folheia mais, simples assim... Mas nem por isso a cultura entrou em crise ou acabou, passou a outro meio, mais dinâmico. A Banca se tornou desnecessária face ao PC e o Jornal desnecessário face a Net e aos meios virtuais... Inclusive aqueles imensos calhamaços chamados Enciclopédias, instrumentos essenciais ao estudo até o final dos anos 80 tornaram-se obsoletos. Do 'Speculum' de Beuvais ou da Enciclopedie de Diderot e D Alambert, a 'Trópico' e a 'Conhecer', passando pela Espasa Calpe tudo isto tornou-se supérfluo por ocupar espaço e certamente não será reeditado em tempos de Wikipedia. Para quem podia gastar os olhos da cara adquirindo tantos e tão luxuosos volumes tal transformação corresponde a uma catástrofe, bem como para nós, meninos, que adorávamos folhear as ditas Enciclopédias (cresci folheando a 'Trópico' da Ed Maltese), fazer o que??? Reconheçamos que nem todos podiam arcar com semelhante despesa!
Ah antes que me esqueça - Juntamente com os brinquedinhos de metal ou plástico, que cederam lugar aos dinâmicos jogos eletrônicos, haviam os álbuns de figurinha, que eram colecionados por quase todo jovem ou criança. Lembro de inúmeros - Da Sara Key, dos Bichinhos fofos, da Xuxam do Fofão, da Menina Moranguinho, do Amar é, etc A geração anterior a nossa conhecerá os álbuns históricos ou científicos da EBAL...
Ao fim da prosa a referência feita a Calafrio, levou-nos a Lovecraft H P, o grande gênio do terror. A Calafrio continha estórias de todo tipo ou origem - Havia muito de Edgar A Poe, assim A queda da casa de Usher... Havia terror europeu e conheci a deliciosa narrativa da 'Vênus de Illé' por meio dela... E havia muito terror brasileiro, adaptação de primeira. E é claro havia muito, mas muito Lovecraft. Havíamos falado sobre Conan e a Era Hiboriana, cujos principados representam nossas antigas civilizações. Meu amigo livreiro comentou que Conan era o mundo de Lovecraf por assim dizer anterior a este nosso em que se passam suas narrativas. Daí a presença da magia, dos demônios, dos deuses antigos, etc nas aventuras do cimério. Completei dizendo que Thundar the barber, era a projeção de Lovecraft no futuro, para daqui a dois mil anos... daí magia, demônios, deuses, etc - Afinal os autores de Thundar - e Mad Max entre aqui - partiram de Conan enquanto Howard era amigo e correspondente de Lovecraft...
Há um pouco de Lovecraft em Conan e um pouco em Thundar, tudo bastante diluído é claro; mas reflete o pensamento de H P.
Após ter entretido tão proveitosa conversação com o nobre sebista corri até este PC, responsável pela derrocada das bancas de jornal com seu mundo de papel, ansioso por registrar o quanto fosse possível e partilhar com meus queridos amidos, sempre tão curiosos quanto aquela boa gente dos anos 50 e 80 com a qual tivemos o grato prazer de conviver quando meninos e da qual tomamos o hábito de folhear e de cultuar os livros, revistas, gibis... O que em parte faz de nós cidadãos de outra Era senão de outro mundo.
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