sexta-feira, 25 de maio de 2018

Egiptologia e conservadorismo

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Costumamos ler e ouvir, amiúde, em diversos artigos, livros ou documentários a respeito do antigo Egito que esta Civilização manteve-se praticamente imutável e estática ao cabo de quase três mil e quinhentos anos a contar de Scorpion ou Narmer (Menés) a bela Cleópatra. Especialmente no campo da religião e da arte nada teria mudado... Recordo-me bem de que no quinto ano, quando contava com doze anos de idade, ao ficar ciente disto - i é da suposta imutabilidade egípcia - fui fortemente impactado.



Psicologicamente aspirava pela estabilidade. Foi o início de minha jornada conservadora, alias alimentada pela cultura tomada ao protestantismo e sua moralidade tosca. Desde então o Antigo Egito converteu-se na pupila de meus olhos e no foco de minhas atenções; e tudo quanto era livro didático corroborava a fábula ou mito do Egito imutável.

Para minha maior sorte, desde os vinte anos, comecei a pesquisar por mim mesmo e ler coisinhas mais sérias assim Lange, Pierre Montet, Vandier... até que cheguei a Etienne Drioton... E toda quimera se desfez. Cedendo lugar a uma compreensão mais objetiva e real. Um dia temos de tomar vergonha e folhear Moret ou de dar ouvidos a Dra Fletcher ou a Gunther Dreyer... Então os ídolos partem-se e caem todos por terra.

Não, o Egito não foi a Sociedade imutável dos idealistas e românticos. Foi uma cultura estável e resistente, mas, de modo alguma uma sociedade paralisada por três mil anos. Ademais uma tal visão seria tão utópica quanto o livre mercado dos liberais, o fim do estado dos anarquistas ou o futuro sonhado pelos comunistas. Nem mais nem menos.

A pirâmides por exemplo não foram uma constante... As primeiras foram supinamente ignoradas por Narmer, Aha, Djer, etc e assim até Djoser, que floresceu em 2.615 a C, durante a quarta dinastia. E já haviam caído em desuso durante o novo império, de modo que as últimas foram construídas para servir de tumbas aos construtores das tumbas reais do Vale dos Reis - que moravam em Deir el Medina - pelos idos de 1100... A bem da verdade outras tantas centenas de pirâmides foram erguidas do oitavo século a C aos primeiros séculos de nossa Era, mas pelos faraós ou melhor pelas faraonas negras (Candaces) de Meroé ou Khush, assim Amanitore, Amani Shesketo, Amanirenas, etc os quais desejavam ser mais egipcios do que os próprios egipcios... No Egito porém já haviam saído de moda há mais de milênio. Ademais os meroíticos, núbios ou etíopes nem sempre respeitaram a forma da pirâmide egipcia - cuja base era quadrangular - chegando a edificar pirâmides de base triangular ou perfeitamente triangulares.

As próprias múmias, que constituem para muitos uma constante na História daquele pais, remontam a Snefru, o construtor da primeira pirâmide em Dashur. Anteriormente as múmias eram produto natural do meio e não produto de intervenção humana. Por outro lado, embora a mumificação só tenha sido abandonada nos primeiros séculos desta Era, devido a influência da fé Cristã, com seu conteúdo judaico, a máscara com que buscavam reproduzir as feições do falecido não conservaram a mesma forma. Assim, alguns séculos antes desta Era, os fayumitas passaram a introduzir nas faixas da múmia umas tabuas ou painéis pintados conforme o gosto helênico ou romano ao invés das velhas máscaras de madeira ou metal que reproduziam o gosto estético dos egípcios. Ao que parece este novo estilo arraigou-se por todo Delta...

Mesmo a medula da religião egipcia, centrada na vida eterna, segundo Drioton, não deixou de passar por drásticas transformações no decorrer dos séculos. Trata-se de um histórico a ser melhor considerado e Drioton pode defini-lo como uma paulatina democratização. Pois a princípio apenas o Faraó tinha acesso a vida eterna, caso os ritos funerários fossem executados. Posteriormente no entanto, a guiza de recompensa, o faraó adotou o costume de conceder tumbas, rituais e consequentemente o acesso a vida eterna seus familiares e colaboradores, assim ao vizir e aos nomarcas; assumindo o além uma forma aristocrática. Com a generalização da mumificação, do jazigo e dos livros mortuários; no Novo Império, a maior parte dos egípcios passou a revindicar acesso a vida eterna, com o 'placet' de seus reis...

Além disto a própria concepção de vida eterna não cessou de transformar-se durante todo este tempo. Pois se é certo que os primeiros faraós, adeptos de uma simples dicotomia - acreditavam que passariam a eternidade ressuscitados em suas tumbas consumindo oferendas, os textos gravados na pirâmide de Unis ou Venis, dão já a entender que ao menos durante o dia o Faraó podia tomar carona na Barca de Rá ou ascender aos céus. Passados alguns séculos a adoção de um modelo tricotômico possibilitou que o espírito do Faraó ascendesse ao mundo divino enquanto que seu corpo ressuscitado (ou habitado pela alma) continuasse a viver em sua sepultura... Os próprios nobres e populares adotaram semelhante modelo, passando a crer que enquanto seus corpos ressuscitados tornariam a viver nas tumbas, o espírito migraria para um local bastante parecido com as margens do Nilo ao que passaram a chamar 'campos elíseos'.

Portanto sequer o cerne da religiosidade permaneceu estático ou fixo entre eles mas sujeito a constante alteração. O mesmo pode ser dito com relação aos deuses. Uma vez que o posto de deus supremo ou rei dos deuses sempre coube ao principal deus cultuado na capital do pais - O Rá da Heliopólis pré dinástica, Phtá de Mênfis durante o antigo Império e por fim o todo poderoso Amon de Tebas, durante o Novo Império. Daí o esperto Usirmaré Setepenre Ramsés II, fazer-se ladear por Rá, Phtá e Amon em seu templo de Abu Simbel. Assim a fama ou status da divindade acompanhou as mudanças administrativas porque o pais passou em seus três mil anos... Até chegarmos a Serapís, o grande deus do período helenístico, cujo principal centro foi Alexandria.

A própria concepção de divindade não deixou de conhecer significativa alteração. Uma vez que Akhenaton aspirou substituir o henoteísmo vigente pelo monoteísmo, da mesma maneira como o henoteísmo havia eclipsado o politeísmo vigente nas primeiras dinastias. Nem foi o culto popular ou folclórico aos animais tão marcante como após o século XII, chegando a predominar no período helenístico. Após ter sido incipiente após o antigo e o médio impérios.

Diga-se o mesmo a respeito de diversas técnicas ou modos de produção. Os quais apesar de sua repugnância os egipcios tiveram de adotar e alterar, tendo em vista a perpetuação de sua autonomia. Assim o emprego dos carros e cavalos, do arco duplo e da machadinha estreita tomados ao invasor Hicso ou Heka Shasut. E mais tarde, ao tempo dos Hititas, a adoção das armas de ferro, em detrimento as de bronze...

Mesmo no plano da arte não se puderam manter estáticos. E se a arte de Amarna apresenta sérias rupturas as estátuas de Senusret III, que remontam ao Império médio, denotam um realismo espantoso. Já ao tempo de Ramsés III, a arte minóica faz sua primeira aparição no Delta...

O próprio caráter ou significado mais íntimo dos faraós também apresentou significativa alteração. Assim nos impérios antigo e médio, o rei é encarado como divino enquanto sacerdote ou representante da divindade; mas só se torna um 'deus' efetivamente, após sua morte. É filho adotivo ou como querem alguns emanação do Sagrado, mas não uma divindade como Rá, Phtá ou Amon aos quais deveria servir. Mentuhotep e Senusret estavam, ao que parece, bastante conscientes de sua humanidade...

É ao correr do Novo Império que as coisas assumem nova configuração, em conexão com o culto do todo poderoso Amon, a esta altura hipostasiado com o velho Rá, o Sol. Hatchepsut, filha de Tutmósis I e esposa de Tutmósis II, buscando legitimar seu poder, em detrimento do enteado - o futuro Tutmés III - e com o decidido apoio de Hapuseneb, alto sacerdote de Amon, não hesitou em recorrer a patranha e recorrer a um mito em torno de sua concepção miraculosa. O deus Amon, assumindo forma humana, havia coabitado com sua mãe... sendo ela filha do próprio deus e portanto uma deusa ou deus encarnado... Desde então pode governar sossegada pelo espaço de uns quinze anos. O preço que pagou pelo poder no entanto foi bastante caro...

Pois cada Faraó deveria compor-se com o poderoso clero de Amon para manter tais fábulas. Não Tutmés III, o Napoleão do antigo Egito, que manteve sua reputação ímpar, devido a seu staus de guerreiro invencível. Seja como for ele não deixou de despejar toneladas e mais toneladas de ouro no Ipet Sut, e de fortalecer o sacerdócio... e assim seus fracos sucessores. Até que o grande sacerdote tornou-se tão poderoso quanto o Faraó, é uma ameaça a seu poderio... Foi quando Amenhotep III, sem romper com os sacerdotes de Amon, retomou, discreta, mas decididamente, a estratégia de Hatchepsut.

Até então, o maior templo do pais estava situada na banda Leste do Nilo, em Tebas, a capital e era Karnak ou o Ipet Sut, com seus quase quarenta acres e oitenta mil servidores, um autêntico feudo sacerdotal... Amenhotep no entanto, optou por construir um templo ainda maior na outra banda, a banda Oeste do rio, a saber seu templo funerário ou necrópole, onde viria a ser adorado após a morte. Era este templo algo absolutamente soberbo e sem precedentes no pais e apenas Abu Simbel viria a faze-lhe sombra século e meio depois. Atualmente restam dele apenas os dois colossos, ditos de Mennon, cada qual com vinte e um metros de altura. Champollion e Rosellini chegaram a ver os pedaços de outros dezoito, alguns dos quais estão sendo desenterrados e restaurados enquanto escrevemos estas linhas. Quantos haviam na realidade não o sabemos... Compunham um verdadeiro exército de gigantes... Amenhotep faz-se apresentar tal e qual os deuses, em pé de igualdade... A mensagem é bastante clara: Ele mesmo é um deus vivo a ser cultuado sobre a terra e assim sua esposa Tyi. Mas não é certo que seu pai fosse Amon, quiçá fosse o velho Rá ou Aton, importava que ele era um deus vivo, concepção que seus sucessores - Horemheb, Seti e sobretudo Ramsés II, jamais abandonaram.

Também a forma do trabalho alterou-se significativamente no decorrer daqueles três mil anos. Devido a experiência porque passaram os antigos hapiru ou semitas, o modo grego de encarar o mundo e as películas de Cecil B de Mille fomos levados a crer que as pirâmides e a grande esfinge de Gise, haviam sido construídas por hostes ou multidões de escravos, conduzidos a ponta do chicote. Hoje, graças a descoberta da Vila em que viveram os construtores de tais monumentos, sabemos ser tal visão completamente falsa ou anacrônica. Tais trabalhadores eram livres e trabalhavam durante as cheias, sob corvéia; sendo além disto alimentados, vestidos e assistidos pelo estado. Acreditavam além disto que erguendo o túmulo do Faraó estavam colaborando em sua deificação e consequentemente colaborando para que a maat ou ordem das coisas fosse mantida.

Posteriormente no entanto foi o carater das coisas sendo paulatinamente modificado. Assim Senusret despeja no Egito milhares de escravos trazidos da Núbia. Tutmés III despeja outros tantos infelizes trazidos da Núbia e em seguida da Palestina após cada uma de suas campanhas e o Egito vai sendo atulhado por escravos estrangeiros cuja mão de obra deve ter sido ostensivamente empregada por Amenhotep III, Seti e Ramsés em suas obras colossais ou 'faraônicas'...

A conclusão a que buscamos chegar é bastante simples: A ideia segundo a qual o Egito se manteve imutável e estático durante todo este tempo é artificial e forçada e corresponde mais a nosso desejo de que as coisas não mudem ou de que o fluxo das mudanças torne-se menos intenso, do que a realidade e somos nós que projetamos nossas inseguranças e temores no passado formando uma imagem 'conservadora' do antigo Egito, uma imagem que é bastante cara para muitos, mas que jamais existiu... Enfim nossa imagem forçada daquele antigo país não passa de mais um álibi ideológico com que procuramos reforçar nossas aspirações e esperanças. Nada de Histórico, concreto ou real. Afinal nem o Egito antigo nem qualquer outra sociedade poderiam fugir aquele fluxo dinâmico que caracteriza tudo quanto é propriamente humano.



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