Gosto quando Marx fala, na "Introdução à Crítica do Direito de Hegel", que a teorias se convertem numa força material quando se apoderam das massas. Também Trotsky diz que não podemos ignorar o poder das ideias, mesmo que não possuam um “aparato” por trás (o que verificou na prática, haja vista a disseminação das posições da Oposição de Esquerda apesar da perseguição da colossal máquina de calúnia e extermínio da burocracia stalinista). Seja como for, para sair do mundo dos devaneios e adentrar a vida concreta, as ideias são operadas por indivíduos, em dada época histórica e sob dadas circunstâncias materiais.
Assim, é idealismo, hegelianamente falando, imaginar que a ideia se concretizará perfeitamente no mundo dos homens, isto é, que não haverá mediações entre o projetado e o aplicado. Isso não é dizer que as ideias (quaisquer que sejam) são utópicas, delirantes, e que na realidade nada sai como planejado; e sim entender que a ideia se concretiza num amplo processo dialético, portanto contraditório e, podemos mesmo dizer, sequer se concretiza, e sim está-se-concretizando. A vida, que é o campo de aplicação das ideias, é um eterno devir.
É muito belo dizer, por exemplo, que ao ser agredidos devemos oferecer a outra face e que devemos nos amar uns aos outros, dado que somos provenientes do mesmo Pai Eterno; mas disso vieram os massacres dos cruzados, a Inquisição e o fundamentalismo cristão. É belo dizer, como fez Adam Smith, que a busca individual por lucro leva ao bem-estar coletivo; mas disso vieram a exploração capitalista, a acumulação e a opressão. É belo bradar por “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, mas não se pode esquecer que isso descambou na guilhotina e, posteriormente, na ditadura de Napoleão.
O inferno está cheio de boas intenções, como diz o ditado.
Desde que o socialismo, enquanto instrumento organizado e científico da luta de classes, começou a ganhar corpo, enfrentou forte resistência dos grupos dominantes. Falamos "luta de classes", afinal, não por mero simbolismo. Essa luta tem vários instrumentos: da aniquilação física à calúnia, passando pela censura e todas as demais ferramentas postas à disposição da classe de exploradores. Nada obstante, isso não impediu o formidável ascenso da classe trabalhadora que, após a Comuna de Paris, "tomou o céu de assalto" na Rússia.
A Rússia, todavia, era um país semifeudal recém-saído do czarismo. A tomada de poder era a parte fácil; a tarefa que se desenhava no horizonte era o desenvolvimento material do país, o que seria impossível sem o socorro do proletariado dos países desenvolvidos. A revolução russa, pois, era, como a consideravam os bolcheviques, o estopim da revolução mundial, não um fim em si.
Mas tal ajuda não veio. E mais de uma dezena de nações capitalistas invadiu o País dos Sovietes para fazer soçobrar a revolução, reforçando a contrarrevolução interna. Não conseguiram, mas se pode imaginar a devastação física, humana, econômica e moral do país.
Mesmo devastada e isolada, a Rússia precisava tentar se erguer. Mas qual seria a consequência desse atraso para o socialismo nascente?
Quem responde é Leon Trotsky:
"É possível que, em virtude de um determinado alinhamento de forças nacionais e internacionais, o proletariado conquiste o poder em um país atrasado como a Rússia. Porém, o mesmo alinhamento de forças demonstra de antemão que, sem uma vitória mais ou menos rápida do proletariado nos países adiantados, o governo russo não sobreviverá. O regime soviético abandonado a sua própria sorte degenerará ou cairá. Mais precisamente, degenerará e depois cairá".
O país isolado, atrasado, fechado em si mesmo, optando teratologicamente pelo "socialismo em um só país" (sic) inevitavelmente falharia na missão de construir o socialismo. Permitiu o nascimento de uma casta burocrática que usurpou o poder dos sovietes. E transformou a ditadura do proletariado na ditadura do partido e, em verdade, na ditadura do secretário-geral.
Em tal cenário, Trotsky nos dá duas variantes hipotéticas: ou a classe trabalhadora faz novo levante para derrubar a burocracia e salvar o socialismo, ou a burocracia, ela própria, restaurará o capitalismo. Afinal, não se contentará, cedo ou tarde, em ser a mera detentora dos meios de produção; vai querer ser proprietária. Infelizmente, foi essa última opção a vitoriosa e pode-se verificar o acerto do prognóstico facilmente: os "novos-ricos" russos de hoje são todos oriundos da "nomenklatura"...
Feita essa breve digressão histórica, há que se perguntar se a causa da falência da URSS, se os crimes do stalinismo, se a degeneração do partido bolchevique, podem ser atribuídos a um defeito intrínseco ao marxismo ou ao leninismo.
Uma das maiores defesas jamais feitas ao marxismo e ao leninismo está no opúsculo de Trotsky, "Stalinismo e bolchevismo". Primeiro, vem uma verdadeira profissão de fé:
"O marxismo encontrou sua expressão histórica mais elevada no bolchevismo. Sob a bandeira bolchevique se realizou a primeira vitória do proletariado e se instaurou o primeiro estado operário".
Como negar o acerto dessas palavras? É possível que venha a surgir um método melhor. Seria antidialético pensar o leninismo (ou bolchevismo) como uma forma "perfeita", "acabada". Também o leninismo deve ser superado. Mas não há ainda, penso eu, ferramenta melhor de práxis revolucionária.
Teria a URSS degenerado por causa do leninismo? Trotsky prossegue:
"Apresentar o processo de degeneração do estado soviético como a evolução do bolchevismo puro é ignorar a realidade social (...)"
Há que se considerar, na degeneração do Partido e do Estado (que inclusive em dado momento passaram a se confundir) todas as variáveis levantadas na digressão histórica acima. A melhor ferramenta pode, em dadas condições, se estragar, e isso não é decorrência da ferramenta senão das condições. Ainda Trotsky:
"O partido que se apodera do estado pode, por certo, exercer sua influência sobre o desenvolvimento da sociedade com um poder que antes lhe era inacessível, porém, em troca, se decuplica a influência que os demais elementos da sociedade exercem sobre ele. "
O partido não está acima nem além da sociedade na qual se insere. As ideias, eu disse acima, precisam de meios materiais, inseridos em um contexto histórico. O atraso, a guerra, a fome: é evidente que o Partido não ficaria imune a isso. A existência determina a consciência, nos ensinou Marx.
Deduzir o stalinismo do bolchevismo é o mesmo que deduzir a contrarrevolução da revolução. O stalinismo é, conclui Trotsky, a "negação termidoriana" do bolchevismo. Não são iguais.
Vejo os companheiros Domingos e Fernando, de forma legítima, eis que sincera, expondo as críticas que lhes fizeram abandonar os quadros do Partido Comunista Brasileiro. Não posso palpitar, por se tratar de opiniões pessoais, nem posso, em respeito ao leninismo (já que sou membro do Partido), dizer aqui se concordo ou não com o teor dessas críticas. Mas penso -e já não me refiro ao PCB em especial, e sim a qualquer agrupamento humano que tenha por escopo a transformação revolucionária da sociedade- que não há partido, coletivo ou organização "prontos" ou "acabados", como o próprio leninismo, conforme falei acima, não é "pronto" ou "acabado". Antes é uma construção diária, dialética, coletiva. Árdua, sem dúvida. Enfrentar tais contradições é o preço que se paga por se engajar, efetivamente, na luta revolucionária.
Naturalmente, há outras formas de militância. Mas penso -como Trotsky- não serem superiores ao leninismo e, em todo caso, nenhuma outra forma de atuação está isenta de obstáculos. Idiossincrasias de toda sorte pululam ao nosso redor e temos, como bons psicológos, que lidar com esses egos.
Pode-se acrescentar ferramentas ao leninismo, naturalmente. Por exemplo, vejo como importante considerarmos o aspecto moral; não a moral burguesa, conservadora e calcada em séculos de obscurantismo religioso, mas a moral humana, a postura ética que os homens devemos ter uns com os outros. É nesse sentido que considero o comunismo também uma filosofia de vida: é preciso que nos despojemos de toda a "carga" acumulada, do egoísmo, do individualismo, do pessismismo, da angústia. O comunista é vibrante e apaixonado pela vida e, mesmo que pareça ridículo, é guiado por sentimentos de amor (como disse Che Guevara, essa outra figura complexa).
Devemos fomentar ao máximo, também, o espírito crítico que é próprio do marxismo. Joguemos fora os manuais; à lata de lixo da História para com os "guias geniais" e "grandes timoneiros" do stalinismo. O comunista, além de ético e vibrante pela vida, é desafiador, inquieto, ousado, rebelde, lírico. Caso contrário, não se é revolucionário, e de comunista só terá o nome.
(E deter meramente um "nome" não é grande coisa; o PCdoB não é de hoje é um partido institucional burguês; o PCCh explora a classe trabalhadora chinesa; o PT, então, de "dos trabalhadores" não tem nada).
Não é o rótulo que importa, e sim a ação. "Imagem não é nada", não diz o comercial de refrigerantes?
Seria uma grande honra militar no mesmo Partido com os companheiros Domingos e Fernando. Mas respeito sua decisão, assim como eles, sabendo que pertenço a esse mesmo Partido do qual saíram, me respeitam convidando-me para integrar a equipe do blog.
Não precisamos, contudo, estar na mesma organização para que militemos juntos. Quem quer que lute contra a opressão, a exploração, o obscurantismo, o pensamento binário, quem quer, enfim, que lute pela emancipação do homem- é meu companheiro de barricadas, esteja onde estiver.
Com saudações comunistas do,
Joycemar Tejo
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