sexta-feira, 2 de agosto de 2019

As empregadas na literatura clássica.

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Há no mínimo duas Nastasyas na obras de Mestre Dosto.

Uma casa-se com Mishkin e leva já sobrenome: Pilippovna. A outra, de 'Crime e castigo' não passa de uma criada sem sobrenome, a que chamam simplesmente Nastasya.

Ao contrário da primeira a segunda não é personagem de primeiro escalão nas crônicas de Rodion, mas personagem de segundo plano, o que não é suficiente para tirar-lhe o encanto, ao menos quando serve chá ao atribulado hóspede esfaimado...

Esta Nastasya como tantas Marias ou Creuzas espalhadas pelo Brasil e mesmo pelo mundo, não tem sobrenome, talvez por pertencer a grande massa dos que servem e produzem. Os marxistas costumam classificar tais pessoas como Lupem e as elites a trata-las com desprezo e até mesmo negar-lhes os mais elementares direitos, e há pouco vociferaram quando o Estado brasileiro concedeu-lhes um amparo bastante sumário.

Apesar de estar a margem da obra clássica, Nastasya não deixa de ser interessante, já por ser pintada por Dostoevsky com a acuidade psicológica que lhe é própria ou singular. E a partir do que narra muito resta a imaginar-se. O mestre russo é tão fascinante que narra ou fala justamente quando omite ou silencia. É consumado em sua arte...

E ficamos nós a perguntar-se sobre um possível amor platônico cultivado pela serviçal. Cujo objeto seria o conturbado Rodion...

Amaria Nastasya e por isso apagar-se-ia face a um amor problemático ou impossível? Permanecendo sempre ali como fiel escudeira ou anjo tutelar? A exemplo das esposas de Carlyle, de Lord Beaconsfield ou da fiel Carolina, esposa de mestre Machado???

Intuo uma certa devoção por parte de Nastasya face ao rebento de Pulchéria Românovicht, associada a diversas virtudes como a compaixão, a discrição, a praticidade... enfim tudo quanto aponta para uma sabedoria divina. No entanto com ela ficamos no 'umbral' e 'Crime e castigo' não é obra que se concentre na vida da apagada serviçal...

Passemos assim a outro clássico calhamaço onde topamos com outras tantas empregadas ou serviçais, assim o 'Vento levou' de M Mitchell (1936) obra focada na figura de Scarlett O'hara e que dispensa maiores atenções. Tá certo, temos também Rhett Butler, Ashley, Melanie, etc Scarlett todavia, como Rodion e Maria Rafferty, ocupa o âmago da trama, constituindo o personagem central. E é uma 'filhinha de papai', granfina ou patricinha, como diríamos hoje... Uma garotinha extremamente mimada pelo pai, fazendeiro de ascendência irlandesa.

As empregadas ou serviçais pertencem a este círculo, pois são, por assim dizer 'amas' de Scarlett. Prissy é a mais jovem e caricata, ao menos no Filme. Doutra lavra é a Mammy, a qual, superando Nastasya consegue em certos momentos da narrativa ameaçar a primazia de Scarlett. No filme a 'rivalidade' acirrou-se ainda mais e podemos dizer que a personagem encarnada por Hattie McDaniel faz jus ao Oscar que ganhou. Mammy encanta e seduz porque representa um tipo que segundo o insuspeito Silvio Romero, aqui e lá, soube vencer as adversidades e conquistar espaço a mercê dos dotes do coração, assim a 'mãe negra', entre nós representada na literatura pela igualmente marcante Mamãe Zabel, quiçá calcada na Mammy de Mitchell, mas muito bem aclimatada a nosso Brasil.

Apesar de toda esta riqueza, como dissemos, Mammy não é a personagem central da narrativa e tampouco uma obra consagrada a figura de uma empregada doméstica. E temos de esperar mais um pouco - seis anos - para apreciar o surgimento de semelhante joia, obra prima da Sra Davenport (Marcia). Aqui temos por personagem central - ou se alguém o desejar por heroína - não apenas uma empregada (O que ao tempo era já um desafio) mas uma irlandesa e católica. A antítese dos White Men's. A inversão do padrão socialmente aceito: Macho, inglês e protestante além é claro de rico...
Maria Rafferty não é nada disto, é mulher, quase menina, e mais tudo quanto dissemos, o que em Pittsburgh torna-a sumamente indesejável.

No entanto ao contrário da pragmática e estouvada Scarlett, Maria Rafferty esta bem mais próxima da mãe daquela personagem, isto tendo em vista os sólidos princípios, já Éticos, já morais, os quais cristalizavam a virtude ao tempo. Maria Raffery personifica-os e com o coração transbordante de doçura conquista a todos, inclusive ao Patriarca calvinista Scott, o qual, numa cena magnífica, triunfa de seus preconceitos e diz a Paulo, seu filho querido: Casarás tu com Maria Rafferty!

Maria Rafferty nos faz pensar na parábola do bom samaritano. Pois eram os samaritanos tão detestados pelos hebreus do tempo de Jesus quanto os irlandeses do século XIX, desprezados pelos ingleses e seus descendentes norte americanos. Maria Rafferty aqui personifica a 'boa samaritana' pois é justamente ela quem irá assistir e aliviar os derradeiros instantes da igualmente bondosa sra Scott, Clarice...

Alias, retornando a cena anterior, em que o Patriarca Scott, opta por afrontar todos os tabus e preconceitos impostos por aquela sociedade em nome da felicidade do filho, temos, já o disse, outra cena memorável e pintada com habilidade. Por meio desta cena nos dá a sra Davenport uma aula ou lição de humanismo querendo dizer que os homens sabem ser superiores a suas crenças e ideologias. Guilherme Scott é  um calvinista devoto e como tal costuma guiar-se pelos costumes, não pelos sentimentos, os quais deveriam ser imolados tendo em vista a dignidade da família. O que nos conduz a toda uma vida de convenções ou de aparências, nas qual a moral social esmaga o sentimento e o espírito. Maria Rafferty no entanto faz com que naquele coração de pedra dura passe a bater um coração de carne, cheio de amor e doçura, e posto para o objeto digno: A Felicidade do filho, pela qual ele opta face as ditas convenções, revelando-se como uma pai na plena acepção da palavra, um pai digno deste nome.

No mais as observações em termos de religiosidade - naquele recorte N Americano - não destoam, pelo contrário aproximam-se bastante as que encontramos em diversas obras: 'O fim do mundo' e 'Pamela e Satã' de Beal Sinclair, o já citado 'E o vento levou', 'Anthony Adverse'... que é o contraste entre a severidade - não poucas vezes forçada e aparente - ou a total incredulidade vigente entre os protestantes (Particularmente entre os calvinistas com seu moralismo afetado) e a sensibilidade, doçura, sinceridade, piedade e equilíbrio dos Católicos... Em todas estas obras damos com referências positivas ou elogiosas a fé Católica e com personagens marcantes oriundos deste credo então distorcido e marginalizado pela crítica protestante. Digam o que disserem é este aspecto sobremodo interessante já a Psicologia já a Sociologia religiosa.

O foco no entanto é este: No 'Vale da decisão' temos, quiçá pela primeira vez uma empregada fazendo o papel de personagem principal de uma trama, o que por si só aponta para o avanço dos costumes, em torno da mulher, do fanatismo religioso, do preconceito racial/cultural, do trabalho, etc Sob todos estes aspectos e muitos outros é a obra da sra Davenport recomendável. E não se assustem com a dimensão: Pouco mais de setecentas páginas, apesar dos erros do tradutor (As atuais edições de 'Crime e castigo' sofrem do mesmo mal), mas de um conteúdo delicioso, propício a ser 'devorado'.

Ademais Mobby Dick, Imãos Karamazov, Crime e castigo, E o vento levou, Anthony Adverse, Poço de solidão, como O vale da decisão e Mobby Dick não apenas merecem ser lidos, é um pecado imperdoável não le-los. Vençam a primeira impressão e obterão a devida recompensa.

Profo Domingos Pardal Braz, de Santos - SP


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