terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Reconsiderando o 'conceito tradicional' de deidade I

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Toneladas de tinta e papel tem sido gastas com o objetivo de refletir sobre as relações existentes entre a deidade e o universo criado ou a matéria e isto desde o tempo dos gregos para os quais a matéria, sendo eterna e incriada, correspondia a um dos aspectos da deidade assim definida como alma ou consciência do mundo.

Os fariseus, escribas e rabinos no entanto apresentaram a deidade como transcendência absoluta e separada do mundo material, como espírito puro ou entidade descarnada (imaterial).

Tal a conjuntura religiosa, de conflito ou choque, em que manifestou-se a fé Cristã, alias num contesto cultural judaico que sempre tendeu a divinizar.

Colossal o esforço da mentalidade Cristã, ao menos desde Filiponos (sec VI) no sentido de apresentar a concepção tradicional de Deus, nos termos do judaismo, como um Dogma Cristão. A apresentação é forçada, senão ímpia. Afinal, no mínimo três Cristãos dos primeiros séculos - dois deles elderes Ortodoxos venerados pela Santa Igreja - opinaram a respeito da eternidade do mundo ou da matéria, a saber, o gnóstico Hermógenes; o catequista e mártir Justino de Roma e o Arcebispo Atenagoras. Segundo a opinião deles a divindade teria organizado a matéria pre existente imprimindo-lhe forma e não produzido a matéria magicamente como se antes nada existisse (ex nihilo).

Felizmente após Galileu e Newton foi o problema da origem do universo e da idade da matéria atribuído em geral a ciência. Ao menos a maior parte dos filósofos e metafísicos e certa parcela de teólogos tem acordado em atribuir esta tarefa a investigação científica. Diante disto alguns suspendem o juízo enquanto outros optam por repousar no berço dourado da fé. Refiro-me a pessoas inteligentes, as quais de modo algum referendam os mitos grotescos do gênesis, limitando-se a supor que a 'grande explosão' que deu origem a este universo também teria dado origem ao elemento material. Portanto, segundo esta concepção, o mesmo evento teria sido responsável pelo surgimento de nosso universo e da materialidade, a qual, antes dele, inexistiria.

Que existiria então?

Apenas a imaterialidade ou a transcendência absoluta, identificada com o Deus produtor deste Universo ou Criador. Criador por ter comunicado existência ao elemento material.

Diante disto que pensar?

Mesmo que a ciência consiga demonstrar a origem deste Universo permaneço bastante cético quanto a possibilidade de estabelecer a origem ou idade do elemento material, o qual sempre poderia pre existir a esta organização ou forma temporal. Da temporalidade do Universo jamais se poderia concluir pela temporalidade da matéria ao menos que houvessem razões bastante sólidas para tanto. O fato é que a eternidade ou a temporalidade da matéria ainda é objeto de amplo debate entre os cientistas.

Permitam-nos portanto especular a luz da razão e dos mistérios peculiares ao Cristianismo ao invés de crer porque os outros creram e repetir tolices.

Longe de mim opor-me a Jesus Cristo, seria o cumulo da incoerência um 'Cristão' professo opor-se a ele. Não sou protestante ou bultmaniano e tampouco biblista ou fundamentalista, apenas niceno ou atanasiano, e coerente. Assim quando ele fala eu me calo, quando ele abre a boca eu escuto, quando ele ensina eu aprendo. Todavia a respeito das coisas sobre as quais ele, o Verbo, silenciou ou nada revelou, farei uso de meus sentidos e da minha racionalidade com plena liberdade, examinando também as opiniões dos sábios da Grécia sem maiores preconceitos. Não vou portanto curvar-me reverente face as opiniões dos profetas, escribas, fariseus, rabinos e lideres religiosos da casa de Israel. Aqui nem mesmo aos santos apóstolos darei ouvidos, pelo simples fato de que estavam inseridos na cultura judaica, a qual tinham em conta de divina. Os mesmos argumentos que empenho contra a mitologia israelita posso empenhar contra a teologia farisaica...

Penso que toda esta questão deva ser examinada liberalmente nos podromos da racionalidade e da tradição peculiar ao Cristianismo, como um problema teológico enfim. Nem ignoro que neste sentido, algumas tentativas arrojadas tenham já sido feitas por figuras como Scott Erigena, Amalric de Benna, Davi de Dinant além do incrédulo Baruch Spinoza. Mesmo os escolásticos tidos em conta de 'Ortodoxos' a exemplo dos padres da Igreja (Origenes, Gregório Nisseno, etc) - Os quais floresceram antes do protestantismo ou da escravidão bíblico/fundamentalista - levantaram e discutiram exaustivamente tais questões sem que fossem ameaçados por anatemas ou palavras amargas.

Então começarei levantando a problemática do 'conceito tradicional' de Deus e levando-a até as origens.

Chega a ser obviedade a primeira pergunta a ser feita: É a doutrina da transcendência e simplicidade absoluta de Deus de origem Cristã ou esta de acordo com os pressupostos fundamentais do Cristianismo?

Neste terreno diversos equívocos tem sido cometidos pelos expositores. O primeiro deles, e o mais tendencioso, tem sido atribuir aos antigos hebreus - que eram henoteistas - o monoteísmo (o qual remonta aos primeiros pensadores gregos, senão a Akhenaton, faraó egípcio) quando sua 'obra prima' é a doutrina da transcendência, simplicidade e espiritualidade de Deus, formulada alguns séculos antes desta nossa Era.

Por sinal cuidam os hebreus que apenas o Dogma Cristão da Encarnação suscite dificuldades face ao conceito tradicional de Deus por eles formulado. Importa saber que a doutrina da Criação não suscita menos dificuldades já quanto a simplicidade do ser já quanto a imutabilidade volitiva. No frigir dos ovos para que Deus fosse absolutamente simples e imutável no sentido estrito da palavra deveria ter permanecido absolutamente inativo, abstendo-se de produzir qualquer coisa. Produção supõem no mínimo certa doze de dinamismo, e partindo-se da tão decantada simplicidade sensível alteração na ordem do Ser. Eis porque tendo em vista a existência do Universo material e da Encarnação repudiamos a simplicidade absoluta do Ser tanto a priori quanto a posteriori, afirmando riqueza em termos de complexidade e multiplicidade de aspectos na Unidade do Ser, a exemplo do mistério trinitariano. Deus é tão rico em sua essência quanto em sua personalidade.

Estamos afirmando que o universo é Deus ou a deidade?

De modo algum. Tudo quanto pretendemos dizer é que a sucessão dos universos materiais corresponde a um aspecto dinâmico inserido no próprio Ser divino ou a uma operação/atividade necessária e portanto eternamente realizada pelo Deus imutável. A matéria pré existe eternamente nele para que ele possa atuar eternamente sobre ela organizando-a e conduzindo incalculável multidão se mundos a posse de seu Ser que é a suprema felicidade e perfeição. Esta saga de sucessivas entidades livres que dele saem e retornam voluntariamente a ele constitui o fim último do universo e a concretização de sua vontade que é a partilha sua bem aventurança. Bem compreendido é um auto desafio e um plano engenhoso. O sentido mais profundo da existência.

Não, o universo material não é Deus, mas um aspecto passivo na divindade, logo algo divino. É um meio posto para que o espírito, ou aspeto ativo/operatório da divindade possa atuar imutavelmente pelos séculos.

É possível que tais cogitações surpreendam e até escandalizem os mais ingênuos e fielmente apegados a 'concepção tradicional' de Deus... Compreendo perfeitamente que judeus e muçulmanos sintam-se desconfortáveis, agora que Cristãos...

Afinal os judeus e muçulmanos tem buscado demonstrar que o mistério da Encarnação opõe-se a doutrina da transcendência e simplicidade absoluta do Ser divino. Admitida a doutrina da simplicidade, é necessário admitir, por uma questão de coerência, que o Dogma da Encarnação seria inviável. Não é o monoteísmo, de modo algum, que se opoẽ ao dogma da Encarnação, mas a opinião da transcendência absoluta.

Por outro lado os Cristãos mais atilados, desde Mar Thimoteos Bispo de Cesareia, levaram a crítica até o fenômeno da 'criação' ou do universo material e esta perspectiva é assaz interessante. Sobretudo se admitimos uma relação estável, constante e perpétua entre o Espírito divino e a matéria - enquanto meio necessário para sua atividade - compreendemos que a Encarnação, longe de representar uma alteração, mudança ou ruptura, representa, muito pelo contrário, uma continuidade e aprofundamento na mesma direção. Deus se aproxima do mundo material, assume-o e manifesta-se nele porque a matéria sempre esteve em contato com ele e ele - "Estava no mundo que foi feito por ele." e o qual amou, a ponto de entregar-se por ele.

Encarnou-se Deus no homem porque de certa forma e em certo sentido sempre este encarnado e em comunhão com a materialidade, produzindo, mantendo e coroando sucessivos mundos. Aproximou-se mais intimamente da matéria porque ela sempre esteve presente nele. Deus jamais foi um espirito puro e simples ou uma transcendência absoluta que num certo dia teve vontade de introduzir a matéria em si mesmo ou de fazer-se homem. Imutável não é Deus sujeito a arroubos ou imprevistos. Alias se é sumamente perfeito como não pode deixar de ser, sequer poderia Deus ser livre. Como veremos mais adiante a liberdade é via pela qual os seres feitos imperfeitos tem acesso a perfeição e não qualidade posta para um ser que já esta em posse da perfeição absoluta. Portanto ele jamais poderia deixar de escolher sempre o melhor ou o mais perfeito, tendo apenas uma única opção. Concluímos que ele jamais podería ser diferente do que é ou mais perfeito e que jamais poderia deixar de atuar sobre um meio material, organizando sucessivos universos, pois esta atividade dimana das fontes de seu Ser, é exigência de sua perfeição. Não podería ser solitário e descarnado, e perfeito. Antes sería um eterno Egoísta. Nem podería ser mutável e existir.

Assim a verdadeira doutrina sobre Deus cessa de ser romântica na medida em que ele cessa de ser imprevisível, caprichoso, arbitrário e antropomórfico; para tornar-se absolutamente previsível e monótono no acesso da razão. E no entanto este 'Deus ex machina' é também autor dos mais nobres sentimentos humanos e de um riquíssimo universo psicológico... podendo ser definido como Bondade, Compaixão, Justiça ou como um Ser ético, fonte de princípios e valores éticos, Legislador supremo, Pai amoroso... Sem com isto deixar de ser coerente, imutável, perfeito, etc

Constatamos por fim que o homem é a imagem e semelhança da deidade porque sendo espírito associado a um corpo físico em que se realiza, foi concebido pela mente que anima este nosso universo material ou pela Alma do mundo.



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